Drácula e Carmilla: uma crítica ao moralismo cristão na literatura gótica

Carmilla e Drácula em um abraço vampírico

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Finalmente, cheguei ao capítulo XVI de Drácula e paro agora para comentar algumas coisas. Eu preciso desse momento para desabafar, antes de retomar essa aventura sombria junto de uma turminha composta apenas por "cidadãos da elite", liderados pelo Dr. Van Helsing. Apesar da coleção de diplomas e do conhecimento vasto em tantos campos, ele fala um inglês com sotaque terrível (e que pode muito bem ter inspirado o jeito de falar do mestre Yoda em Star Wars).

Alerto para o fato de que meus comentários e reflexões contêm muitos SPOILERS sobre o livro, então já fiquem avisados.

O meu comentário principal, no entanto, é uma crítica e uma reflexão sobre um traço que observei nesta obra vampiresca de estilo gótico (nesta e também em outra: tanto Drácula quanto Carmilla compartilham similaridades). A crítica e a reflexão que faço são sobre as histórias de vampiro clássicas me parecerem uma alusão a um moralismo decadente e fortemente inspirado por valores cristãos. Bom, talvez eu esteja exagerando em falar isso sobre todas as histórias de vampiro clássicas, pois o meu comentário vale sobretudo para Drácula e Carmilla. Não vou falar das histórias que eu ainda não li. Porém, creio não estar errado em supor que os demais livros da época sigam mais ou menos o mesmo viés desses dois grandes clássicos do tema.

Claro, isso faz parte da literatura gótica: questões morais são abordadas, quase sempre como uma forma de manifestar a hipocrisia da sociedade da época diante de várias questões envolvendo religião, moralidade, sexo, comportamentos inadequados, etc.

O que me incomodou em Drácula e Carmilla não foi exatamente essa abordagem: ela é esperada e até certo ponto ela é bem trabalhada em ambas as obras.

O problema é quando vemos o reforço de certas ideias e valores (sobretudo valores cristãos). Em Carmilla, por exemplo, podemos dizer que a "mulher" é colocada como "sujeita" a ser mais facilmente influenciada pelas forças das trevas pelo simples fato de as vítimas de Carmilla serem jovens mulheres. Ainda que a história deixe claro que a predileção por mulheres seja uma preferência de Carmilla, os personagens masculinos do livro são os que de fato resolvem o problema e eliminam o "monstro". Laura, a protagonista que narra toda a aventura, fica de fora do processo, tendo conhecimento de como Carmilla foi encontrada e morta em sua cripta por intermédio de terceiros, como seu pai e como o padre especialista em exterminar vampiros, que aparece apenas no final da aventura para pôr um fim aos monstros que assombram aquela região (uma espécie de antecessor espiritual de Van Helsing, se é que podemos chamar assim).

Neste caso, podemos dizer que as mulheres são vítimas do mal e estão sujeitas a ele. Da mesma forma, são os homens os mais preparados para exterminar o mal. De certo modo, vemos aqui a associação do feminino com o mal e do masculino com o bem. Eva e Adão. Valores cristãos reforçados por traços socioculturais representados na literatura da época.

De certo modo, isso era de se esperar. Afinal, não imagino que um trabalho como "cortar a cabeça de uma vampira em sua cripta e depois queimar seu corpo" fosse de fato permitido a uma mulher naqueles tempos; ainda mais uma mulher jovem como era o caso de Laura. Mulheres podem cortar cabeças tão bem quanto homens; eu sei disso, afinal vivo no século XXI e tenho aversão à hipocrisia e às regras sociais (pelo menos as regras que eu considero hipócritas).

Em resumo, veja como me parece injusto que Laura, a protagonista feminina dessa interessantíssima história que é Carmilla, seja o centro de toda a aventura sobrenatural que acompanhamos ao longo de dezenas de páginas para, no final, ela ser colocada de escanteio para que os homens (cavalheiros honrados e cujas posições sociais os tornam mais capazes de decapitar vampiras adormicidas em suas tumbas) entrem em cena e "resolvam" os problemas. Ainda que Carmilla seja um monstro e uma assassina, eu sinto que há algo errado na forma como essa história encontra o seu desfecho. Não estou bem certo do que é esse algo e talvez eu precise escrever muitas e muitas páginas para encontrar a resposta (eu reflito melhor quando escrevo). Deixo isso, porém, para uma outra oportunidade.

Volto para Drácula, sobre o qual eu quero falar sobre o mesmo tropo que citei acima na novela Carmilla. Deixo claro que ainda não terminei de ler Drácula e, portanto, minha opinião ainda não está totalmente formada a respeito do livro como um todo. Creio, porém, que quanto a esse tropo eu já posso bater o martelo: Bram Stoker fez o mesmo que Le Fanu com uma de suas personagens femininas.

Durante a primeira metade do livro, acompanhamos uma série de diários, recortes de jornais e cartas, tanto de personagens masculinos como de femininos. Uma dessas personagens femininas é Lucy, amiga de Mina que por sua vez é a esposa de Harker (o advogado que inicia a obra com o seu diário em que narra sua viagem ao castelo do conde Drácula na Transilvânia).

Lucy é uma mulher jovem e que está noiva. No entanto, ela está fadada a ser transformada em vampira pelo próprio Drácula, que usa de seus poderes tremendos para beber o sangue da jovem noite após noite, apesar das tentativas de proteção empregadas pelo Dr. Van Helsing, quando este é chamado para examinar a misteriosa doença de Lucy (que ele logo desconfia não ser uma doença e sim algo pior: o ataque de um vampiro).

Van Helsing fracassa e Lucy é transformada em vampira após uma sucessão de acontecimentos trágicos e catastróficos em sua casa, na qual até mesmo sua mãe idosa e doente vem a falecer.

Apesar de Lucy não ter tido a mesma sorte de Laura, vemos aqui algumas repetições do referido tropo: vemos novamente uma mulher sucumbir mais facilmente às forças das trevas, afinal Harker foi prisioneiro do próprio Drácula em seu castelo e, apesar de tudo indicar que o jovem advogado encontraria no antro desse terrível monstro a sua morte final ou pelo menos a sua transformação em vampiro, ele consegue escapar com vida, ainda que com sequelas.

Além disso, quem tenta salvar Lucy de seu terrível destino são homens: um jovem médico e o seu professor, ninguém menos que o Dr. Van Helsing, especialista em várias áreas além da medicina, incluindo o conhecimento sobre a existência de vampiros e também sobre como enfrentá-los. Neste ponto do tropo, temos o homem como a criatura com direito divino de possuir tais conhecimentos místicos, o que é negado à mulher (talvez devido à crença de que as mulheres são mais suscetíveis às trevas e, por isso, seria perigoso para elas ter tal conhecimento).

Porém, como eu disse, Van Helsing fracassa em sua primeira tarefa: a de impedir que Lucy se transforme em uma vampira. Porém, ainda é dele (e de seu jovem ajudante) a missão de salvar a alma de Lucy de um tormento eterno, destruindo-a como vampira antes que ela assassinasse algum inocente e com isso acabasse condenando a própria alma ao inferno. E como Van Helsing fará isso? Muito simples: novamente um grupinho de homens deve encontrar a vampira dormindo em seu caixão para então furar seu peito com uma estaca e cortar sua cabeça para quebrar a maldição. Neste caso, o grupinho masculino é formado por dois jovens ex-pretendentes de Lucy: o jovem médico e um estrangeiro, ambos liderados pelo experiente Doutor Van Helsing, que lhes ensina a religiosa arte de matar vampiras em seu leito durante o momento de repouso.

Claro, eu sei que Lucy se tornou um monstro, assim como Carmilla. Mas algo na forma como esses “exorcismos” de mulheres vampiras são contados me incomoda.

Jovens vampiras com rosto pálido e cabelos brancos

A minha crítica é justamente essa: nessas histórias clássicas, o homem representa o bem, e por isso o guia “iluminado” e especialista em caçar vampiros é um homem. Claro que em uma sociedade tão rígida como a da época e tão fortemente influenciada pelas crenças católicas, não delegariam tal função para uma mulher. Mas ainda assim isso me incomoda.

Conforme citei Carmilla antes, o mesmo “modus operandi” ocorre em ambas as histórias: um grupinho de homens entra em cena para desentocar uma vampira lascívia, uma fêmea que troca o dia pela noite para caçar suas vítimas com quem busca aplacar seu desejo insaciável por sangue (ou pelo prazer implacável que sente ao drenar a vida de outros).

Não à toa, parte do repertório de poderes que os vampiros e vampiras apresentam está relacionado com a sedução: um poder quase sempre atribuído às mulheres e ao mal, o pecado original que representam.

Apesar de eu entender que essa é uma história de vampiros, eu entendo também os valores morais e sociais que a sustentam. Neste caso, digo que a visão clássica do vampiro é limitada e problemática ao reforçar certos valores.

Não estou dizendo, com isso, que não gosto de ambos os livros. Ao contrário: eu amo ler Carmilla e Drácula. No entanto, devo ser sincero e falar sobre os problemas que encontro em ambos os roteiros.

Eu acho que a literatura gótica é fantástica e os seus cenários e temáticas servem justamente para mostrar o medos e temores da sociedade vitoriana: sobre tudo os medos que essa sociedade sentia ao confrontar seus desejos e sonhos com o que a religião e os valores morais permitiam.

Um vampiro de olhos vermelhos sujo de sangue
Ainda assim, acho um pouco injusto o fim de Carmilla e Lucy (falo sobre a destruição delas enquanto vampiras). Sei que elas eram monstros e assassinos, mas eu também penso nelas como vítimas não apenas de seus instintos, como também do ponto de vista humano que as descreve, afinal, os ratos vão falar muito mal dos gatos e chamá-los de assassinos enquanto que os gatos vão apenas dizer que estão indo no açougue pegar sua refeição. Ou seja, há uma questão aqui que é a natureza intrinseca de um ser para o qual o humano não passa de alimento.

Felizmente, há outras histórias de vampiros por aí. Dou um destaque super especial para “Entrevista com o Vampiro” de Anne Rice. Nesta obra, Anne muda tudo, sem deixar de ser gótica e sombria em sua trama. Os protagonistas dessa história são os próprios monstros e ver as coisas pelos olhos deles permite também ver além dos mantos hipócritas da sociedade.

Mas deixo para falar sobre Entrevista com o Vampiro em outra oportunidade.

Agora eu preciso voltar para minha masmorra, pois o sol está forte demais.

Até uma próxima noite escura para falarmos de mais assuntos sombrios 🍷🧛‍♂️

Drácula e Carmilla em um cemitério