Kai Kai Vilu: O Dragão do Mar da Patagônia e os Ciclones e Tufões

Kai Kai Vilu, Dragão da Patagônia e Serpente Marinha Mapuche, emerge colossal no centro de um Ciclone Extratropical. Seus olhos são abismos e raios elétricos cortam o corpo de escamas de rocha vulcânica. Cena de Dark Fantasy épica.

Kai Kai Vilu: A grande Serpente do Abismo Marinho

Prólogo: A Fúria do Mar

Ogro: Protegido em minhas galerias de pedra nas entranhas do Monte Silva, eu observava o cataclismo que se aproximava velozmente da costa. Os humanos chamavam-no de ciclone. Um ciclone extra-tropical. Mas eu sabia que aquilo era, na verdade, um monstro abissal, uma terrível criatura ancestral, que acordava de tempos em tempos nas profundezas do Oceano. Nos últimos tempos, seu sono tem durado cada vez menos e, seu despertar tem sido cada vez mais violento.

Rajadas de vento capazes de arrancar pequenas árvores do chão se aproximavam com ímpeto feroz, chuvas que transformam a terra em lama e os rios em lagos profundos capazes de engolir tudo à sua volta em breve chegariam nas selvas que envolvem o Monte Silva. Isso quer dizer que nos países humanos, conectados ao meu mundo por caminhos secretos, a tempestade também devia estar a caminho: um cataclismo climático como há muito as pessoas não viam.

Tola é a criatura que confia na ordem. Nada é permanente. A ordem é frágil e exige um esforço contínuo para sua manutenção, em que qualquer vacilo é um convite ao caos primitivo e absoluto. É como se a própria terra estivesse... voltando ao seu estado primordial: um estado líquido e turbulento.

O Mar está avançando sobre a terra, com impetuosidade explosiva. Eu sabia do que se tratava aquilo... Não era uma simples tempestade. Era o despertar de uma criatura primitiva.

Com a velha luneta na mão, que outrora pertenceu a um pirata, eu avistei, por um instante, um grupo de viajantes seguindo uma trilha que corta as matas em volta do Monte Silva. Eles lutavam contra o vento que os golpeava e a água fria que açoita como um chicote d'água.

Pensei comigo mesmo que seria bom alguém descer e avisá-los do perigo que corriam. Do contrário, a tempestade os alcançaria, vinda do mar, e ela poderia matá-los.

Humanos não são apenas tolos: são tolos arrogantes que, quase sempre, subestimam os alertas e o poder da natureza.

Enquanto o vento lá fora se tornava pouco a pouco um colosso insuperável, frio e cortante, lembrei do meu ensopado quente, que já devia estar fumegando no fogão. E então dei-me por satisfeito em lamentar a tolice da humanidade. Que o vento carregue aqueles tolos.

Dei de ombros e desci para uma câmara mais baixa onde o ensopado me aguardava.


A refugiada

Ogro: Algum tempo se passou. Eu estava entretido relendo A Ilha do Tesouro — que aliás, é um ótimo livro —, quando escutei uma voz assustada ecoando pelas galerias superiores. Uma voz frágil e trêmula.

Eu surgi de uma passagem escura, grunhindo um "Quem está aí?" um tanto quanto mais grave do que eu pretendia. Eu sou grande, assustador e coberto de peles de animais. Foi um bom susto o que dei na pobre criatura, embora essa não tivesse sido a minha intenção.

Uma mulher, encharcada e tremendo, recuou. Havia cheiro de sangue nela, ou melhor, cheiro de morte e violência. Mas eu não sabia se ela era vítima ou vilã na senda que havia escolhido percorrer. Não ainda.

A julgar pela galeria em que ela estava, devia estar seguindo o som crepitante do braseiro e o calor que vinha das profundezas da caverna.

Apesar de ter visto o grupo de viajantes à distância, pela luneta, eu a reconheci... Ela era uma das pessoas naquele pequeno grupo.

Ogro: Onde estão os outros? — indaguei, olhando em volta e farejando o ar.

Ela tentou fugir, correndo de volta por onde veio. Eu a segui, até que ela percebeu que a água já havia inundado a entrada da caverna. Haviam outras cavernas por onde ela poderia sair, mas ela não sabia disso. Minha casa era um labirinto de túneis e câmaras subterrâneas. Aquela pobre criatura estava presa entre a tempestade colossal lá fora e eu.

Eu falei, com uma voz que ecoava, mas não gritava, impondo autoridade:

Ogro: Se sair dessa caverna, estará rumando para a morte certa...

Ela voltou o rosto em minha direção, arregalando os olhos. Parecia prestes a cair no choro.

Ogro: Você não precisa ter medo de mim... ou pelo menos, não tanto quanto deveria ter da tempestade furiosa que está lá fora, rasgando o mundo. A menos que queira ser arrebatada pela fúria do vento e lançada contra os galhos das árvores, ou contra as rochas e os abismos nas encostas dessa montanha.

Apontei para a saída em cuja abertura a água estrondeava ruidosamente, mesclando a arrebentação de água e granizo contra o solo rochoso. A entrada da caverna dava em uma grande depressão no solo, que a esta altura parecia um lago.

Mari: O que é você? — ela perguntou, com a voz trêmula.

Ogro: Sou o que vê...

Mari: Não sei o que vejo... Nunca, nunca vi algo parecido.

Ogro: Ela deu um passo atrás, parecendo ainda em dúvida sobre qual destino lhe parecia menos terrível: a tempestade lá fora ou...

Ogro: Um monstro. Pode dizer a palavra. É o que todos vocês dizem quando me veem; um monstro terrível, não é? Alguns dizem que pareço um híbrido de troll, lobisomem e yeti. Perguntei para ela "O que você acha?", ao que ela retorquiu, num sussurro carregado de pavor:

Mari: Esta parece uma descrição apropriada.

Ogro: Tem razão — disse eu, contornando-a e me aproximando da boca da caverna. — Monstro, é? O verdadeiro monstro não está naquilo que os olhos costumam ver — então apontei lá para fora.

Ogro: Onde estão os seus amigos?

Mari: Como sabe que eu estava acompanhada?

Ogro: Faz diferença? — Dei um riso de escárnio.

Mari: Em primeiro lugar, eles não são meus amigos... São só um grupo de turistas que eu conheci nesse passeio pela mata Atlântica. Maldito passeio. Nos perdemos em uma trilha no litoral após o nosso guia desaparecer na selva.

Ogro: Enquanto ela falava, eu a estudava. Ela não parecia exatamente uma turista. Estava vestida para uma incursão de muitos dias na selva. Sua mochila e equipamento pareciam ser de alguém que entende sobre plantas e animais. Talvez uma bióloga, agente florestal ou uma contrabandista... Uma bio-pirata.

Eu devo ter deixado minhas suspeitas transparecerem no meu semblante, pois ela se defendeu sem eu precisar dizer uma palavra:

Mari: É verdade. Eu juro.

Ogro: E por qual razão você não está com os outros "turistas"?

Mari: Nós discutimos... Houve uma briga. Estamos perdidos há algum tempo e estão todos nervosos, preocupados com água e comida. Um deles... Um deles se machucou.

Ogro: Entendo. O guia desapareceu, e um "turista" está machucado. Lamentável...

Mari: Sim e para piorar, o ciclone trouxe a tempestade até nós... Nunca imaginei que o ciclone traria tempestade assim tão forte nesta direção.

Ogro: Ah, então o ciclone seguiu vocês até aqui. Que terrível. Isso deve ter sido assustador. Bom, mas acontece que vocês não estão na Mata Atlântica. Certamente se perderam ou seguiram algum caminho que, definitivamente, não deveriam ter seguido até este lugar.

Mari: Então que lugar é esse?

Ogro: Respondi "É um lugar que fica na encruzilhada com muitos lugares, por assim dizer.", ao que ela me olhor com desconfiança. "Não é impossível voltar por onde vieram, e retornar à Mata Atlântica e ao país que conhecem...".

Mari: Então estamos mesmo em outro país?

Ogro: "Pode-se dizer que sim.", olhei para fora da caverna, apreciando o clarão dos relâmpagos e concluí "Mas, com esse clima, ninguém pode ir a parte alguma. Deve ter sido terrível serem pegos pela tempestade."

Mari: Foi... Os outros queriam seguir por um caminho duvidoso e perigoso. Mas a tempestade já estava sobre nós e, quando menos esperávamos, um tufão desceu sobre a mata, bem perto de onde estávamos. Eu disse que era melhor virmos para a montanha, mas eles disseram que não... Então eu os deixei para trás?

Ogro: Reparei que a mochila dela estava bem carregada. Deve ter sido difícil para ela subir a trilha com todo aquele peso.

Ogro: Ah, eles disseram que não é? Estranho, não é uma decisão muito inteligente a deles, não é mesmo?

Mari: Nada inteligente. Não tive escolha, senão correr pela trilha que sobe a montanha.

Ogro: Correu? Com todo esse peso? Incrível. Deve ser uma humana bem forte. E o turista machucado ficou para trás com os outros?

Mari: Ele... Ele não conseguiria subir a montanha, mas... Mas... Eu não tenho culpa. Por qual razão eu deveria ficar para trás com eles?

Ogro: É verdade. Talvez eles tenham se recusado a vir para a montanha, porque teriam que abandonar um companheiro ferido nesta árdua subida. Nada inteligente, mas nobre, até mesmo para humanos...

Mari: Do que adianta nobreza quando se está morto?

Ogro: Eis aí, minha cara, uma pergunta importante. Pelo menos você se salvou, não é mesmo?

Mari: Sim. Achei que aqui em cima seria mais seguro...

Ogro: Até me ver, não é mesmo? — Estreitei os olhos e me aproximei um passo.

Mari: Fique longe.

Ogro: Não tenha medo. Ah, mas eu te dou medo, não é mesmo? Eu posso mudar minha aparência, se preferir.

Dizendo isso, dei mais um passo e, antes que meu pé tocasse o chão de pedra, já não tinha o mesmo aspecto que antes. Assumi uma forma mais "humana". Ela ficou boquiaberta, sem palavras. Enquanto eu caminhava lentamente em sua direção, o som das minhas botas negras de couro ecoavam à nossa volta.

Acredito que eu estava adequadamente apresentável; uma calça preta rústica e larga presa por um cinto de couro afivelado com um pequeno brasão prateado. Uma camisa de algodão negra, sobre a qual uma pesada capa escura repousava.

Ainda assim, ao estender-lhe a mão, ela disse com imenso pavor:

Mari: Você é algum demônio?

Ogro: Tenho certeza de que te diriam isso. Mas, com quem tenho o prazer de falar?

Ela hesitou por um instante, mas por fim, respondeu:

Mari: Mari... Me chame de Mari.

Ogro: Eu sabia que ela estava me dando um nome falso, ou talvez um apelido e respondi: "Mari? Ah, que irônico..."

Mari: O que quer dizer?

Ogro: Quero dizer que, como você, é a própria fúria do Mar quem nos visita hoje, aqui neste ermo ao qual você não pertence. Mas siga-me, Mari. Não há como você sair daqui e nem como resgatar os outros "turistas" com quem você se perdeu. Venha comigo, se quiser secar essa roupa e apreciar uma refeição quente, pois, pelo aspecto dos seus olhos e sua palidez, você não está apenas assustada; está com fome e o frio vai te fazer mal.

Ela hesitou e eu ri, acrescentando:

Ogro: Se preferir, pode se arriscar lá fora.

Minha frase foi pontuada por um clarão, seguido por um trovão estrondoso, que ecoou até as profundezas do meu lar. Ela pegou em minha mão como que aceitando o meu convite.

Ogro: Fez uma sabia escolha. Se tivesse escolhido se arriscar lá fora, teria sido arrebatada pelo Kai Kai Vilu. Nunca o vi tão furioso. Deve estar zangado mesmo.

Mari: K-Kai... Vilu? Quem é esse?

Eu soltei um riso curto, de desprezo. Tola humanidade. Não conhece o nome da própria ruína. Eu lhe disse:

Ogro: Aquilo que você chama de Ciclone. Essa tempestade. Na verdade, isso é um monstro, um monstro marinho ancestral. Muito perigoso.

Ela me olhou de um jeito estranho, como se duvidasse do que eu dizia. Não me importei. Era sempre o mesmo com os humanos, teimam em acreditar no sobrenatural, mesmo quando estão diante de um Ogro.

Mari: A propósito... Como se chama?

Ogro: Tenho muitos nomes, mas você pode me chamar de Orcus.

Mari: Orcus?

Ogro: Sim. Orcus, com circunflexo no "Ô". A propósito, quer que eu leve a sua mochila?

Mari: Não, não precisa!

Ela respondeu de forma enfática, apertando a alça da pesada mochila. Dei de ombros e disse "Como quiser, Mari".

Então a guiei por uma curva no fim do túnel e descemos por uma longa escadaria de pedra, cujo final estava um completo breu. Ela hesitou. Estalei os dedos e algumas tochas se ascenderam ao longo das paredes de pedra, o que a fez se assustar.

Mari: Isso é mágica? Você deve ser mesmo algum demônio...

Ogro: "Demônio é um termo engraçado. Pode ser aplicado a tantas coisas diferentes e, quase nunca a palavra é dirigida a um demônio de verdade".

Chegamos a um portão de ferro, gradeado, que eu abri com uma pesada chave.

Ogro: Vamos — eu disse, guiando-a pelo meu labirinto inferior: galerias de pedra, escadarias profundas e masmorras, masmorras e mais masmorras. — Não se preocupe. Estamos indo para um enorme salão de pedra, no centro do qual um enorme fogareiro irá ajudar a secá-la e aquecê-la. Eu te ofereço refúgio contra o Dragão Mapuche, pois é isso que o Kai Kai Vilu é. Enquanto se seca, eu lhe conto tudo o que precisa saber sobre esse terrível monstro que emerge das profundezas do mar para lançar sua fúria sobre o mundo.

Mari: Quer dizer, o ciclone extratropical?

Ogro: É mesmo uma mulher cética. Ciclones, tornados, furacões... Quando nascem no mar, nestes oceanos que banham a Patagônia e o sul do Brasil, são resultado do despertar de uma terrível fera.

Enfim chegamos ao salão subterrâneo em que eu costumava receber visitantes (principalmente os inesperados), onde o calor do fogareiro aceso começou a afastar o frio da tempestade. Servi uma porção do meu ensopado apimentado e hidromel, e comecei a narrar uma história sobre um violento dragão da Patagônia.


O Dragão da Patagônia

Ogro: Sente-se e coma. O meu ensopado apimentado é o melhor para o frio. Aqui estamos protegidos do abraço violento do vento que urra lá fora como uma besta descontrolada. O que está lá fora, Mari, não é uma tempestade qualquer. Ah, não. Aquilo é um monstro, e o seu nome é Kai Kai Vilu. Não é um demônio serpentino qualquer. É a própria essência do Abismo. No caso, do Abismo marinho.

Mari: Abismo? Eu... eu pensei mesmo ter ouvido uma voz no vento. Voz não... Um urro feroz. Esse som parecia, a princípio, vir do mar, mas então, quando as nuvens de tempestade nos cercaram, eu escutei esse rugido no céu, em toda parte à nossa volta. Foi então que o vento nos alcançou.

Ogro: Você ouviu o rugido do dragão, Mari. A história dele nasceu com os Mapuche, o Povo da Terra. Eles vivem no Wallmapu, que é a Patagônia. Naquele lugar, o chão treme, o céu ruge e o mar devora a terra. O Mapuche sabe que a vida é uma tensão constante, uma Dualidade perpétua. Eles temem o cataclismo porque o cataclismo é o vizinho deles.

Ogro: Vocês pensam em bem e mal, Luz e Trevas. Eles pensavam em Ordem (Küme-fel) e Desordem (Weza-kintun). Cosmos e Caos.

Mari: O que é o Weza-kintun?

Ogro: Aquilo lá fora, que você chama de Ciclone extratropical, é na verdade a própria força primordial do caos encarnada. É a Desordem Total, o impulso de retornar a matéria ao seu estado líquido original, antes da criação de tudo. É a essência do que está lá fora, Mari, a ânsia de ver sua frágil civilização ser apagada.

Ogro: O nome dele já diz tudo; Vilu ou Filu é apenas Serpente. Imaginem um dragão do mar, uma fera colossal das profundezas. Mas a repetição, Kai Kai, minha cara...

Fiz uma pausa dramática, aproveitando para mexer o ensopado com uma enorme colher de pau.

Ogro: Kai Kai significa a Grande Serpente Destruidora. É o Dragão da Patagônia, a forma primordial e colossal do caos aquático.

Ogro: Eu ri: "Você parece ser da América do Sul, e mesmo assim não sabia que havia uma lenda sobre uma serpente marinha tão próxima de sua casa? É verdade, por algum motivo, seu povo se esqueceu das antigas lendas e perdeu o conhecimento sobre o mundo sombrio que se esconde sob o véu que vocês acreditam ser a realidade."

Ogro: Kai Kai Vilu é a personificação do Weza-kintun — ele busca o retorno do mundo ao caos líquido. O oposto absoluto da ordem terrestre. Ele não quer apenas matar você, Mari. Ele quer submergir o mundo e apagar da face da terra qualquer vestígio da sua frágil civilização.

Fiz outra interrupção... O vento rugia nas galerias superiores com tanta força que parecia o resfolegar do próprio Dragão da Patagônia.

Ogro: Não tenha medo, Mari. É só o vento... Está segura. Ao menos, por enquanto...


O Mensageiro do Mar

Ogro: Algum tempo depois, a pesada porta de ferro da câmara se abriu com um guincho metálico, e uma figura estranha e aquática, escura como basalto molhado, irrompeu no salão. Era o Ipupiara, uma criatura da água doce e salgada, coberto de algas escuras. Ele estava encharcado, com seus olhos bulbosos cheios de terror.

Ogro: Mari soltou um suspiro abafado e se encolheu, cobrindo inconscientemente a mochila com o braço. Eu murmurei para a criatura, em uma língua gutural que ela mal podia entender: "O que foi que aconteceu para você entrar aqui desse jeito? O que o mar trouxe consigo, que assombrou até mesmo você?"

Ogro: A voz dele era um gorgolejo baixo e urgente, cheio de pânico, mas agressivo. Ele me disse "É o Vilú, senhor Orcus! Ele está na costa. As ondas estão mais altas do que no último grande cataclismo!"

Olhou de soslaio para Mari e prosseguiu dizendo que "A Machi do litoral me enviou. Ela disse que a fúria do mar está sendo atraída até o Monte Silva, buscando por criminosos, humanos que também tem culpa pelo caos que revolta as entranhas do abismo... precisamos de algo para a oferenda. Alguma coisa que tenha sangue e vida."

Ogro: Eu respondi "Ou algo que tenha valor sentimental profundo. Não sabemos o que um monstro ancestral como o Kai Kai vai aceitar como sacrifício e não cabe a nós decidirmos".

Mari: "Orcus, o que... o que é essa coisa? E do que ele está falando?"

Ogro: Eu olhei para Mari, encolhida. "Não se preocupe com ele agora. Ele está apenas me trazendo notícias sobre o que você chama de ciclone." Virei-me para o Ipupiara. "Você ouviu, meu amigo. Eu tenho uma ideia para resolver isso. Vá para a câmara dos fundos e aguarde. Não quero que perturbe minha hóspede."

O Ipupiara recuou, desaparecendo pelo túnel escuro por onde veio.

Ogro: Eu voltei-me para Mari, relaxando no meu assento: "O que ele disse, Mari, é o que o Kai Kai Vilu diz há milênios. A humanidade é a fonte da própria ruína. O dragão, você vê, é um juiz. O Weza-kintun, essa Desordem que ele encarna, não é um mal aleatório. É a punição cósmica pela arrogância e pela ganância humana."

Ogro: "Pense na sua 'civilização'. Ela não é ordem, é uma monstruosidade corrupta. Vocês envenenam o Lafken — o oceano de onde ele emerge — com o lixo, a poluição e a ganância. Vocês rasgam a pele da Trentren Vilu — a Serpente da Terra — com mineração clandestina, desmatamento e esgotamento dos recursos."

Ogro: "E o pior de todos os crimes contra o Povo da Terra, Mari, é o saque. A bio-pirataria. A ideia de que vocês podem entrar nas matas sagradas, roubar a vida selvagem, animais e plantas endêmicas, para vendê-las no seu mercado pirata, que só se importa com dinheiro, e não com a balança da natureza."

Ogro: Eu notei que Mari mal respirava, seus olhos estavam fixos na pesada mochila aos seus pés. Eu dei o sorriso mais largo e sombrio que consegui. "Toda essa destruição, Mari, é o que alimenta o ciclone lá fora, o que desperta a fúria do Dragão do Mar."

Ogro: "Diga-me, Mari... Por que você fugiu daquele grupo? O que aconteceu com o 'turista' ferido? O que a sua consciência, que é um fardo muito mais pesado que essa mochila, está lhe dizendo? De qual desordem você, pessoalmente, é culpada?"

Mari estava branca como cera, incapaz de falar.

Ogro: "Não se preocupe. A Machi está certa, a fúria do Vilú exige um preço. É o Guillatun, o sacrifício que restaura a ordem. Portanto, Mari, você terá que tomar uma decisão muito em breve: o que você escolherá sacrificar ao Dragão para acalmar a tempestade? O fruto da sua ganância, o conteúdo dessa mochila... ou a sua própria vida?"

Mari: "Do que está falando? Quem é essa Machi?"

Ogro: A Machi, Mari, é uma figura central entre os Mapuche. Ela é a "xamã" ou "sacerdotisa" que serve de ponte entre o mundo terreno e o mundo espiritual. Ela é a guardiã do equilíbrio, a única capaz de intermediar com as forças da natureza, como a Trentren Vilu e, sim, até mesmo o Kai Kai Vilu.

Ogro: Ela está no litoral porque é a sua função: manter a harmonia entre o oceano e a terra. Se ela te enviou uma mensagem através do Ipupiara, é porque o desequilíbrio que você causou é grave e está atraindo a fúria do Dragão do Mar diretamente para este lugar.


O Monstro

Ogro: A mulher respirava, em pânico.

Ogro: Eu ignorei a respiração ofegante de Mari. O tempo da lição de moral havia passado, agora era o momento de aterrorizar.

Ogro: Mari, você não está compreendendo a dimensão da sua escolha. Não estamos falando de um animal colossal que possa ser caçado ou abatido. O Kai Kai Vilu não é apenas uma jubarte gigantesca ou uma hidra mitológica. O Kai Kai Vilu é o próprio cataclismo.

Ogro: O Vilú emerge do Lafken, o mar profundo, o abismo que é o berço do caos. Não pense em barbatanas ou nadadeiras: o movimento dele é o próprio maremoto. O ciclone lá fora é apenas um sintoma da sua respiração.

Eu me levantei, caminhando ao redor do braseiro, projetando sombras gigantescas nas paredes de pedra, o que intensificou o medo de Mari.

Ogro: Quando o Kai Kai Vilu desperta, ele se move pelo oceano como uma Serpente Marinha Gigante e colossal, com escamas escuras e duras como rocha vulcânica. Sua cabeça, ao emergir, se projeta nos céus, e nuvens de tempestade se formam ao redor de sua boca.

Ogro: Os olhos dele não são olhos, Mari, são buracos negros ou abismos oceânicos. Ele varre o mar com sua cauda, criando o ciclone devastador do qual você fugiu, erguendo tsunamis gigantescos. Ele lança raios e tufões, tentando afogar o mundo, buscando a desarmonia que o alimenta.

Ogro: A única força capaz de contê-lo é sua contraparte, Trentren Vilu, a Serpente da Terra e da Montanha. A Trentren, ao contrário do Kai Kai, é igualmente colossal, mas com uma aparência de terra e vida. Suas escamas lembram cascas de árvore e montanhas cobertas de musgo.

Ogro: A Trentren geme e se eleva, seus movimentos tectônicos erguendo as montanhas mais rapidamente do que o mar consegue subir. A batalha entre essas duas serpentes colossais é a própria história geológica da Patagônia. É a luta eterna entre o Weza-kintun (Caos Líquido) e o Küme-fel (Ordem Terrestre).

Ogro: O poder de Kai Kai é o Dilúvio Universal— a elevação incessante da água. Há poucos milhares de anos, a famosa ilha das cobras, no litoral de São Paulo, não era uma ilha. Era o cume de uma montanha. Em uma das antigas batalhas, o Kai Kai Vilu reclamou a montanha para o seu reino — o Lafken. Ele saiu vitorioso em sua intenção, tornando a montanha na ilha de cobras e serpentes.

Eu voltei a me sentar, olhando-a nos olhos, o sorriso sumindo para dar lugar a uma seriedade fria.

Ogro: A Machi e o Ipupiara buscam o que quebrou a ordem. A fúria do Dragão, Mari, só se aplaca com a justiça cósmica. O que a sua bio-pirataria roubou vale o preço que você terá que pagar?


O Guillatun: Sacrifício

Mari: "Eu sabia... Você é um demônio! E está aqui para me levar para o inferno".

Ogro: A humana estava branca como cera, procurando freneticamente algo em suas vestes. Eu ri da sua impotência; debatia-se como um peixe fora da água. O medo é um tempero delicioso e adicionaria um sabor especial para o meu ensopado.

Ogro: Não adianta chorar e se debater, Mari. Seu povo acredita que suas ações no mundo não possuem consequências. Agem como deuses, mas não passam de um dos muitos animais ligados à cadeia da vida. O Kai Kai Vilú exige um preço por seus crimes...

Ela continuou procurando por algo, em vão...

Ogro: Está procurando por isso? — indaguei, mostrando a ela uma pistola. — Achou que eu deixaria você entrar em minha casa armada? Só de tocar esta abominação, sei que você a usou recentemente... Ela cheira a sangue. Como foi mesmo que o seu companheiro machucado se acidentou?

Mari: Não! Eu não tive escolha... Era a única forma de sair daqui com o material. Aqueles idiotas iam deixar todo o nosso trabalho ir por água abaixo, só por causa de uma tempestade. Para começar, nós planejamos usar a tempestade para evitar a vigilância ambiental. Covardes. Mereceram ser pegos pelo tornado! Mereceram!

Ogro: Ela ficou fora de si ao ter seus segredos revelados. — Seus companheiros tiveram mesmo o castigo por seus crimes. Mas, e quanto a você? O que você merece, Mari?

Mari: Deixe-me ir...

Ogro: Com um passe de mágica, fiz a pistola desaparecer e disse "Mesmo que eu deixasse você ir embora, o Kai Kai Vilú está lá fora, te esperando. Além disso, o ciclone não vai parar até que o sacrifício lhe seja ofertado. Não posso deixar as criaturas do Monte Silva debaixo de uma tempestade dessas por sua causa, humana."

Ogro: Mari entrou em pânico, agarrando a mochila pesada. Ela correu na direção do túnel escuro por onde o Ipupiara havia saído.

Um barulho estrondoso de metal soou e o guincho metálico de ferro em várias direções ecoou.

Ogro: Você acha que consegue escapar, humana? Os túneis das minhas galerias não respondem à sua vontade.

As tochas nas paredes se apagaram, exceto sobre o grande braseiro, cuja chama mudou para uma cor azulada e pálida. Três pesados portões de ferro se fecharam em três galerias escuras com um barulho ensurdecedor. O único túnel que permaneceu aberto revelou duas criaturas aquáticas, escuras e robustas, com olhos bulbosos e a pele coberta de algas.

O Ipupiara voltou para o salão acompanhado por um parceiro, e ambos bloquearam a última saída. Mari caiu de joelhos e falou em prantos:

Mari: Por favor... Orcus... Eu imploro por minha vida! Eu juro que deixo o saque para trás e que nunca mais volto aqui!

Ogro: Eu me levantei, lentamente. — É tarde para juramentos, Mari. Não vou permitir que bio-piratas voltem a por os pés no Monte Silva. Além disso, sua vida agora pertence ao Kai Kai Vilú. O castigo que o Dragão traz para a terra só pode ser aplacado pelo sacrifício daqueles que carregam a culpa pelos crimes contra a ordem da natureza.

Ogro: Pense no seu sacrifício como um ato nobre de redenção... Se é que você é capaz de imaginar algo parecido com nobreza...

Mari: É... é minha. É a minha vida. Eu não tenho nada para sacrificar... a não ser isso!

Ogro: Ela atirou a mochila pesada e encharcada aos meus pés. Lá dentro, envoltos e protegidos por em materiais sintéticos de última geração, estavam ovos de uma espécie de ave ameaçada de extinção e amostras de uma planta medicinal rara e protegida — um tesouro para bio-piratas do mundo todo.

Ogro: Eu dei um passo para trás. — Então, você escolhe abdicar do fruto da sua ganância. O Guillatun, o ritual de súplica, é sangrento em sua raiz. O TrenTren Vilú aceita o sacrifício do que é mais valioso. Eu toquei o pacote de ovos com a ponta da minha bota. — Isso será devolvido à terra, para que ela se reordene. Mas o sacrifício não termina aqui... O Kai Kai Vilú não se satisfaz com pouco para aplacar sua ira. A vida roubada deve ser reposta.

Ogro: Meu corpo começou a pulsar e mudar de forma novamente, minha pele se dissolveu em um material negro e reluzente. Meus membros se alongaram, e eu assumi uma forma híbrida, aquática e sombria, capaz de suportar o mar e o vento lá fora.

Ogro: Você roubou a vida da terra e abandonou um companheiro ferido à morte certa na trilha, quebrando a ordem terrestre de Trentren Vilu. Por isso, a terra a rejeita. E você buscou refúgio no meu salão, sob o domínio do Kai Kai Vilu. Por isso, o mar a reivindica.

Voltei-me para os Ipupiaras e disse:

Ogro: Levem-na. É chegada a hora do Guillatun.

Os dois Ipupiaras, fortes e silenciosos, agarraram Mari pelos braços. Ela gritou, mas o som se perdeu no rugido do vento que vinha do túnel.

Fomos para o litoral por uma galeria secreta que levava à face leste do Monte Silva. Emergimos em uma plataforma de rocha natural, com quase trezentos metros, que avançava como um braço de pedra sobre a baía. Lá, na ponta, estava o altar: uma rocha escura e polida, cercada pela arrebentação furiosa.

As ondas batiam com impetuosidade, e o ciclone parecia querer nos rasgar, mesmo que ainda estivesse distante no mar. Os Ipupiaras acorrentaram Mari ao altar de pedra.

Eu me posicionei em frente a ela, de frente para o mar, para a fúria do Dragão. Minha voz, na forma aquática, era um sussurro grave que o vento não podia abafar.

Ogro: Escute, Kai Kai Vilu! E você também, Trentren Vilu! Esta humana, Mari, veio saquear a terra, roubar a vida da sua mata. Ela conspirou, roubou e traiu. Mas ela se arrependeu e devolveu o fruto de sua ganância! Eu mostrei a mochila. Aceite o sacrifício e a purificação de sua forma. Eu me encarrego de devolver esse tesouro para a mata.

De repente, o mar à nossa frente recuou, formando um vale imenso no meio da tempestade. E então, uma onda colossal, negra e brilhante, se ergueu, vinda do centro do ciclone, com a altura da montanha. Era o próprio poder do Kai Kai Vilu se manifestando.

A onda irrompeu sobre a plataforma, vindo na direção de Mari. No último instante, a onda não a atingiu com força, mas a envolveu em uma esfera de água salgada e espumosa. Dentro da esfera, sua pele se metamorfoseou, tornando-se escura, lisa, com a forma híbrida de golfinho e mulher. O Cahuelche renasceu.

A onda se desfez, e a criatura recém-nascida, Mari, agora livre das correntes, foi arrastada pelo vento para o mar. Eu voltei para a minha forma de Ogro, coberto apenas de espuma e algas, e me virei para a montanha. O vento, lá fora, começou a abrandar. O rugido do ciclone diminuía.

Ogro: Eu disse para ela, em um tom que era, ao mesmo tempo, melancólico e cruel: Agora, vá, criatura das águas. O Mar a espera, como espera por todos os piratas. Agora o ciclone vai se acalmar. Por enquanto.

Ogro: Eu voltei para o meu lugar no salão. Os portões de ferro se fecharam com um estrondo. Pedi para amigos levaram os itens na mochila de Mari de volta para a mata, assim que o tempo melhorasse. O ensopado ainda estava quente. Após me secar, eu peguei A Ilha do Tesouro e retomei a leitura. A ordem, por mais frágil que fosse, havia sido momentaneamente restaurada.

O Abismo Marinho se manifesta. O Kai Kai Vilu, Dragão da Patagônia, emerge com o poder destrutivo do Ciclone, confrontando a frágil ordem humana (Weza-kintun).

📚 Fontes para Aprofundamento no Bestiário

O conto que você acabou de ler explora a fúria do Kai Kai Vilu, uma das figuras mais colossais da Cosmovisão Mapuche, o Povo da Terra. O mito da Grande Serpente da Água e sua batalha com a Trentren Vilu (Serpente da Terra) é uma explicação ancestral para catástrofes como terremotos, tsunamis e o ciclo de destruição e reordenamento na Patagônia.

Para aqueles que desejam explorar a lenda original do Dragão da Patagônia, o papel da Machi e a origem de criaturas como o Cahuelche e o próprio conceito de Guillatun, confira as seguintes referências e fontes:

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