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Nana, neném,
Que a Cuca vem pegar,
Papai foi pra roça,
Mamãe foi trabalhar.
Bicho papão,
Sai de cima do telhado,
Deixa o bebê
Dormir sossegado — antiga cantiga folclórica
Quem nunca ouviu essa cantiga de ninar?
Mesmo agora eu posso vê-la ali, na escuridão da floresta tropical, mexendo em seu caldeirão de ferro com um pedaço de madeira irregular e medonho. A poção repugnante e de cheiro asqueroso lança vapores fumegantes no ar, que correm pela mata, deixando todas as criaturas ao redor em misto de hipnoze e horror doentio.
Ainda assim, me aproximo, para observá-la; a Cuca, a terrível feitiçeira. Tem uma aparência assustadora; seus traços se assemelham aos de uma velha anciã, mas não uma anciã humana. Está mais para uma um misto de mulher velha com um orc ou goblim de pele acinzentada e ligeiramente escamosa, com verrugas protuberantes nos braços. As unhas compridas possuem uma coloração escura e indefinida. Os dedos são compridos e ossudos, dando às suas mãos o aspecto de aranhas ameaçadoras quando se movem sobre seu caldeirão. O rosto é sombrio, com olheras profundas sob olhos pequenos e brilhantes. O sorriso medonho exibe dentes irregulares e estranhos, como se em uma mesma boca pudessem nascer dentes de gente junto a dentes de crocodilo. Os cabelos volumosos são cinzentos e se esparramam de forma desgrenhada sobre seus ombros. As vestes esfarrapadas e sujas bem que se confundem com as folhas e ramos da mata, servindo-lhe de camuflagem.
Seus infeites são jóias bizarras; brincos de osso balançam suavemente de suas orelhas pontudas e colares de crânios de pequenos macacos envolvem seu pescoço magro e estranhamente comprido.
Ela solta uma gargalha de gelar o coração e, olhando em minha direção, diz que está quase terminando de preparar sua receita, afinal, o ingrediente final, acaba de chegar.
A Cuca vem pegar
O folclore brasileiro é uma vasta tapeçaria de lendas que mescla culturas de várias regiões do mundo, desde os mitos dos próprios povos ancestrais da América do Sul, até países europeus como Portugal, Espanha e também de todo o continente Africano devio a triste história de escravidão que fez parte da colonização do Brasi. Nesta tapeçaria de retalhos tão diferentes e disformes de lendas e mitos, poucas figuras são tão intrigantes e marcantes quanto a lenda da Cuca. Esta criatura, que assombra o imaginário popular há gerações, possui uma história rica e multifacetada, que remonta a tempos antigos e se transforma ao longo dos séculos. Como escritor de fantasia sombria e entusiasta de assuntos sobrenaturais, registro agora o que aprendi pesquisando sobre essa enigmática entidade em meu Caderno de Curiosidades sobre Folclore.
Foi quando eu escrevi A Rua dos Anhangás, há alguns anos, que eu comecei a pesquisar mais profundamente sobre o folclore brasileiro e também sobre a mitologia dos povos ancestrais da América do Sul. Naquela época eu percebi uma grande semelhança entre as criaturas mitológicas da América do Sul com os Yokais do Japão. Da mesma forma, vejo semelhanças entre as entidades do folclore japonês com as entidades folclóricas que evoluíram no Brasil ao longo do tempo, com a mistura de crenças e lendas de outros países.
Por exemplo, a Yamauba é uma bruxa do folclore japonês que habita as montanhas do nordeste do país. Ela é conhecida por seus poderes mágicos e por ser uma figura enigmática. Apesar de ser representada como uma figura frágil, ela pode se transformar em uma figura assustadora, com chifres, cabelos semelhantes a serpentes e uma segunda boca. Algumas versões dessa lenda dizem que ela pode desviar balas e criar escuridão à sua volta. Sim, o Japão é lar de lendas sobre criaturas assustadoras.
Graças à influência de Monteiro Lobato com seus livros infantis sobre várias figuras do folclore brasileiro, muitas gerações cresceram imaginando que o folclore brasileiro é de fato infantil. Mas a verdade é que nossas criaturas são tão sombrias quanto qualquer Yokai. A Cuca é um exemplo. Esqueça aquela versão infantil e engraçada de um jacaré humanóide dando gargalhadas malignas como uma vilá caricata da Disney. A origem da Cuca não possui nada dos traços coloridos que vemos no Sítio do Picapau Amarelo.
Claro, não quero dizer que Monteiro Lobato não teve os seus méritos ao resgar as figuras do folclore brasileiro. Ele o fez, inclusive, como parte de um projeto de reforçar a identidade nacional em seu tempo. Afinal, o folclore é uma parte vital da identidade cultural de um povo, carregando consigo histórias, mitos e lendas que são passadas de geração em geração.
No entanto, para que essas figuras folclóricas não caiam no esquecimento, é essencial renovar suas representações e adaptá-las aos tempos modernos. E é por isso que eu gosto de representar os personagens históricos que trago aqui para o blog sobre um viés que mescla a pesquisa sobre suas origens e evolução ao longo do tempo, bem como enfatizo sua caracterização de forma mais sombria.
Aliás, acredito que, invariavelmente, a origem da maioria das lendas possui um viés mais sombrio do que a o fenômeno "Disney" fez parecer desde que começou a reimaginar os "contos de fadas". Acho, inclusive, que esse fenômeno "Disney" no mundo foi o que levou Monteiro Lobato a seguir o caminho de dar uma roupagem mais infantil para as lendas do folclore, afinal era o que estava na moda naquele tempo. Suas obras, como "O Sítio do Picapau Amarelo", apresentaram personagens folclóricos de maneira acessível e educativa para as crianças. No entanto, as representações de Lobato, embora importantes, são impregnadas da "infantilização" que vemos no "jeito Disney" de contar histórias.
Hoje, contudo, isso já não atende às expectativas do público contemporâneo, que busca uma abordagem mais sombria e complexa para os mitos e lendas.
Em resumo, renovar a representação das figuras folclóricas é essencial para garantir que elas continuem a fazer parte do nosso imaginário coletivo. Ao adaptar essas histórias para os tempos modernos, podemos resgatá-las do esquecimento e mantê-las vivas para as futuras gerações. Como um estusiasta de assuntos sobrenaturais, é um privilégio explorar e registrar essas histórias, mantendo viva a chama do mistério e da curiosidade ao resgatar os aspectos sombrios do nosso folclore.
Mas o quanto a Cuca é sombria em suas origens?
Isso é o que irei abordar a seguir, então sigam-me os maus...
Origens Antigas
A Cuca do folclore brasileiro, tal como a conhecemos hoje, foi moldada principalmente por Monteiro Lobato, isto é um fato. No entanto, ele se inspirou em várias lendas de origens europeias para delinear as características gerais do seu "bicho papão". A principal dessas criaturas era a Coca, um ser muito presente na cultura ibérica. Ou seja, a Cuca tem suas raízes nas tradições ibéricas (ou seja, na cultura ibérica), onde figuras semelhantes, conhecidas como "Coca" ou "Cocanha", eram usadas para assustar crianças desobedientes. Essas entidades eram descritas como monstros que habitavam as sombras, prontos para capturar aqueles que não obedecessem aos pais. A transição dessas figuras para o Brasil colonial trouxe consigo adaptações e transformações que resultaram na Cuca que conhecemos hoje.
O folclorista Luís da Câmara Cascudo descreve a Cuca como uma velha enrugada, de cabelos brancos, magríssima e corcunda. Ela é um fantasma noturno que aparece durante a noite para levar as crianças desobedientes. Cascudo menciona que a Cuca conduz a criança num saco e some imediatamente após capturá-la. Ele baseava-se nas primeiras versões da Cuca que tinhamos por aqui no Brasil e que derivavam diretamente da sua origem européia. Apenas depois, com Monteiro Lobato é que a Cuca viria a adquirir traços reptilianos, também inspirando-se em um monstro europeu, como irei mencionar adiante.
Essa questão sobre a aparência da Cuca já foi um tópico de discussão na internet há algum tempo por causa da série Cidade Invisível, da Netflix, como é possível ver nesse artigo do Blog Aventuras na História. Porém, como o artigo demonstra, ao conhecer a história da evolução dessa importante lenda do nosso folclore, é fácil compreender que a aparência dessa tenebrosa bruxa brasileira sofreu mudanças no decorrer do tempo e que, com os livros e principalmente com a série O Sítio do Picapau Amarelo, sua aparência icônica com cabeça de Jacaré ficou marcada no imaginário brasileiro.
Contudo, não podemos esquecer sua origem europeia e, por falar nisso, eu acredito que seja importante explicar um pouco sobre a cultura ibérica, para que seja possível compreender como o nosso folclore foi influenciado pelos povos que faziam parte dessa cultura durante o período de Colonização do Brasil.
A cultura ibérica refere-se às tradições, costumes e influências culturais dos povos da Península Ibérica, que inclui principalmente Espanha e Portugal. Esta região tem uma rica história de civilizações antigas, como os celtas, romanos e visigodos, que contribuíram para a formação de uma cultura diversificada e complexa. Toda essa "complexidade" cultural aportou aqui na costa brasileira e de forma violenta e caótica, mesclou-se com os mitos das tribos ancestrais que já viviam aqui e, com o passar do tempo, também se mesclou com a cultura africana trazida ao Brasil à bordo dos navios negreiros, abarrotados de escravos capturados de forma bárbara em sua terra natal para serem arrastados até as selvas tropicais do Novo Mundo.
Ainda assim, a Cuca, é uma lenda brasileira mais influenciada pelas antigas lendas portuguesas e espanholas do que pelos mitos aborígenes e africanos. Mesmo a sua versão mais atual (a bruxa com cabeça de jacaré de Lobato), é uma mescla de lendas européias.
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"Que viene el Coco" de Goya (1799) |
Eu recomendo muito o artigo A Cuca Não é Nossa, do site Aventuras na História. Apesar do título do artigo, não é possível afirmar que a Cuca não é nossa. Ao invés disso, podemos dizer que essa criatura do nosso folclore foi importado lá da europa, assim como o lobisomem e outros. Mas ao ser integrado à nossa cultura, sofreu transformações, conforme expliquei antes. Nesse sentido, Monteiro Lobato foi o responsável por registrar em termos gerais a forma como o brasileiro interpretava esse ser assustador usado para assustar as crianças desobedientes.
Registros Históricos
Aqui estão alguns registros históricos e referências à Cuca (ou Coca) desde seu lar no velho Mundo até suas aparições e evolução no Brasil. Eu obtive essa informações no artigo que indico acima, lá do Blog Aventuras na História:
- Livro 3 de Doações de Dom Afonso III (1274): A mais antiga referência ao personagem está neste livro, mencionando a Coca como um ser assustador.
- Gravura "Que viene el Coco" de Goya (1799): Representa a Coca como um fantasma ou uma bruxa assustadora. A figura pode ser vista acima e, quem desejar, pode encontrar sua versão digital em alta qualidade no site do Museu del Prado (Espanha). Segundo o site do museu "Nesta gravura Goya aborda o pernicioso sistema de educação das crianças através da ameaça de seres monstruosos, e como as mulheres acolheram seus amantes em suas casas, livrando-se dos filhos através deste método".
- Obra de Tarsila do Amaral (1924): A artista brasileira produziu uma obra baseada na descrição da Cuca, atualmente exposta no Museu de Grenoble, na França.
- Canções de Ninar: A Cuca era mencionada em canções populares cantadas para as crianças, como uma forma de assustá-las e fazê-las dormir.
- Tradição Oral: A lenda da Cuca foi transmitida oralmente e incorporada ao folclore brasileiro durante a colonização portuguesa.
A Cuca no Folclore Brasileiro
Ao ser incorporada ao folclore brasileiro, a Cuca ganhou características únicas. Desde Monteiro Lobato, ela é descrita frequentemente como uma velha bruxa com aparência reptiliana (Lobato teria se inspirado no Dragão derrotado por São Jorge para dar à Cuca uma cabeça de Jacaré), pele escamosa e garras afiadas, ela se tornou uma figura temida pelas crianças. Monteiro Lobato, em sua série de livros "Sítio do Picapau Amarelo", popularizou a Cuca como uma vilã que vive em uma caverna e possui poderes mágicos. Essa representação ajudou a consolidar a imagem da Cuca no imaginário popular brasileiro.
A Cuca nas Obras Recentes
Nas últimas décadas, a Cuca tem sido retratada em diversas obras de literatura e televisão. Em algumas histórias, ela é apresentada como uma figura trágica, vítima de circunstâncias que a levaram a se tornar a criatura temida que conhecemos. Em outras, ela é uma anti-heroína, lutando contra forças ainda mais sombrias para proteger algo valioso. Essas representações modernas ajudam a manter a Cuca relevante e intrigante para as novas gerações.Citando obras em que a Cuca aparece
- Livro: O Sítio do Picapau Amarelo - Escrito por Monteiro Lobato, esta série de livros é onde a Cuca foi popularizada no Brasil. Ela é retratada como uma vilã que vive em uma caverna e possui poderes mágicos.
- Série: Cidade Invisível - Esta série brasileira da Netflix apresenta a Cuca como uma das personagens principais, trazendo uma abordagem moderna e intrigante para a figura folclórica.
Conclusão
A Cuca é uma figura fascinante que continua a evoluir e capturar a imaginação das pessoas. Sua jornada desde as tradições ibéricas até o folclore brasileiro e suas representações modernas mostram como as lendas podem se transformar e se adaptar ao longo do tempo. Como pesquisador de assuntos sobrenaturais, é um privilégio explorar e registrar essas histórias, mantendo viva a chama do mistério e da curiosidade.