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Finalmente, completei a leitura de Drácula, de Bram Stoker. Eu conheço o personagem de Drácula há muito tempo, pois ele é um dos vampiros mais famosos da cultura pop, ou talvez seja o vampiro mais famoso. Porém, devo dizer que a cultura pop criou novas releituras do personagem original e certamente ele foi engrandecido em certos aspectos, humanizado em outros e, graças a obras como a série de jogos Castlevania e depois a série da Netflix, bem como os vários filmes de Drácula, aprendemos com o passar do tempo que esse vampiro é um vilão romantizado. Por exemplo, em muitas adaptações, Drácula se apaixona por uma mulher que o faz lembrar da falecida esposa, ou então ele se tornou um vampiro após se revoltar contra Deus devido à morte de sua esposa, etc.
Esse famoso romance gótico, a origem de tudo o que vemos na cultura pop, é bem diferente do que eu esperava. A versão de Bram Stoker desse famoso vampiro não é nada romantizada e devo dizer que, neste livro, ele se parece mais com um vilão clássico propriamente dito; um verdadeiro monstro, que é tratado pelo grupo de personagens como tal.O Drácula de Bram Stoker não está em busca da mulher amada. Ele quer deixar seu território na Transilvânia para expandir seu domínio e ter acesso a uma quantidade ainda maior do seu alimento: pessoas. O lugar escolhido, após muito estudo e cálculos realizados com a frieza de um coração de pedra, é Londres: uma cidade com milhares de pessoas, onde ele planejava se banquetear e deleitar em banhos de sangue e, de quebra, produzir mais vampiros e servos. Segundo é dito pelo seu maior adversário nessa história, o icônico Van Helsing, se Drácula não for detido, ele se tornará o pai de uma nova raça de "desmortos" que povoarão todo o mundo. No caso o termo "desmortos" empregado por Van Helsing seria o mesmo que vampiro, mas também se refere a seres amaldiçoados que morreram e depois "desmorreram" ao adquirir uma vida diabólica.
Quanto à mulher amada mostrada nos filmes, não vemos nada disso nesse romance gótico. As mulheres vampirizadas nessa história ou são apenas uma forma de saciar sua sede de sangue ou são objeto de sua vingança. Ao menos, o próprio Drácula afirma que mordeu e batizou uma dessas mulheres com o seu próprio sangue para se vingar do grupo que estava em seu encalço, tentando atrapalhar seus planos e, ainda segundo ele, essa mulher, bem como todos os que ele mordeu e batizou, viriam em seu auxílio quando ele ordenasse que assim fosse.Este é o Drácula de Bram Stoker: um vilão, estrategista, frio e vingativo vampiro.
No geral, eu gostei da leitura de Drácula. Aprendi muita coisa, como o fato de que existem diversos tipos de vampiro e, segundo algumas lendas que correm pela Romênia, sobretudo na região dos Cárpatos, Drácula pertence a uma categoria de vampiros com poderes extraordinários: capazes de controlar os lobos, os morcegos, os ratos e outros tantos animais. Também é capaz de assumir a forma de animais (como lobos, morcegos, entre outros), assumir a forma de neblina, passar por frestas muito pequenas, controlar o clima, etc. Drácula é um verdadeiro vilão todo-poderoso, como aqueles que se tornariam famosos nas histórias em quadrinhos norte-americanas.
Lendo Drácula, eu pude viajar para os Cárpatos e tive algum contato com aldeões supersticiosos e até mesmo com um grupo de ciganos que trabalham (por algum motivo obscuro) para o terrível conde. Também fiz alguns passeios pela Inglaterra e pude me divertir com o clima gótico de cidadezinhas pequenas e a pequena bagunça que Drácula causou pela região em sua curta estada por lá.
Um dos meus personagens favoritos nesse livro é Richard Montague Renfield, paciente de um hospício que fica nos fundos da propriedade que Drácula adquire em Londres: Carfax é o nome do edifício que o Conde Drácula compra com a ajuda de Mr. Hawkins e Jonathan Harker, que na época dessa transação era o assistente do advogado.
Eu também me diverti ao ler uma obra que é inteira contada através da leitura de diários, cartas e jornais. Isso é chamado de romance epistolar; uma narrativa baseada principalmente em cartas ou registros similares (como os diários). Até então, eu não havia lido nenhuma obra que fosse inteira baseada nessa forma de narrativa e certamente que a experiência é enriquecedora.
No entanto, também faço algumas críticas à obra, conforme já comentei aqui no Blog ao longo da leitura. A primeira e principal crítica é voltada para um aspecto comum na literatura gótica vampiresca: essa é uma literatura que explora o pudor exagerado de uma sociedade hipócrita. Vemos isso na forma como as personagens femininas são tratadas; damas que devem ser “recatadas e do lar” para serem consideradas honradas à vista da sociedade. Apesar disso, Bram Stoker brinca com a ideia de forma dissimulada e aproveita para mostrar outros aspectos da natureza feminina (que, convenhamos, não pertencem apenas ao feminino e sim à natureza humana), por exemplo, quando lemos o diário da senhorita Lucy e da senhora Mina e nos deparamos com suas confissões a respeito do que Lucy sente pelos seus vários pretendentes. Claro que tudo é dito e descrito da forma mais conservadora possível, mas ainda assim fica claro o sentimento de Lucy quando ela diz “como seria bom se não precisássemos escolher um pretendente e sim casar com todos eles”. Da mesma forma, Van Helsing faz alguns comentários dúbios em um momento de histeria após participar da decaptação e empalamento de Lucy (já transformada em vampira). Nesse momento, Van Helsing ri de um comentário feito pelo noivo da moça, Lord Godalming, que ingenuamente diz que sentia como se houvesse casado com ela e a prova disso era que o sangue dele corria em suas veias (pois ele havia doado sangue para ela, antes dela se transformar em vampira; quando ele apenas achava que ela estava doente). Van Helsing ri e diz que mal sabe ele que todos eles haviam doado sangue para a moça e, neste caso, era como se todos eles pudessem sentir que haviam casado com ela.Eu tenho uma opinião sobre essa personagem e o seu destino na obra de Bram Stoker: eu acredito que ela é um elemento simbólico sobre o moralismo impregnado nesse romance gótico (o que é comum nesse gênero literário). Ao mesmo tempo que temos Lucy revelando seu desejo por uma sociedade mais livre no que diz respeito aos aspectos românticos dos relacionamentos amorosos, temos também o fato de que, após ser mordida por Drácula, ela não resiste por muito tempo e acaba por se transformar completamente em vampira após seu falecimento. Ela torna-se uma vampira, descrita como lasciva e capaz de hipnotizar as pessoas com seus poderes e encantos sedutores (como o canto da sereia faz com os marinheiros).
Ao contrário de Lucy, Mina Harker (uma dama recatada e do lar, que reforça em vários momentos ter olhos apenas para seu marido) resiste à maldição do vampiro por mais tempo e, embora a sensação de urgência e perigo iminente estejam presentes a todo momento e sejam reforçados com frequência, sabemos que, ao contrário de Lucy, Mina se salva. Claro, graças ao esforço conjunto dos heróis cavalheirescos à sua volta (incluindo seu marido).Não acredito que Bram tenha escrito o romance com a intenção de fazer de Lucy um exemplo quanto aos perigos que as mulheres correm ao se permitirem assumir o interesse que podem nutrir por mais de um homem. Talvez a intenção de Bram fosse apenas escrever uma história de terror realmente sombria, transmitindo ao leitor a sensação de perigo iminente e, neste aspecto, ele foi bem-sucedido, pois caso a senhorita Lucy não tivesse morrido e se transformado em vampira para então “morrer de novo” de forma horrível durante um empalamento seguido de decaptação, não ficaríamos ao longo do romance tão preocupados com o destino de Mina Harker, seu marido e os demais personagens dessa história sombria.
Ainda que a intenção de Bram Stoker não tenha sido a de fazer de Lucy um exemplo, a ideia está lá. Fico me perguntando por que ele não fez ao contrário: Mina Harker poderia ser a primeira vítima e Lucy poderia sobreviver e ser a heroína que nos acompanha até o final da aventura.
Outro aspecto que critico na obra de Bram Stoker é o quão impregnada a história está de “elitismo”. Bom, deixo claro que não estou criticando Bram Stoker em si e muito menos estou tentando dizer que o livro seja ruim, porque não é: Drácula é uma história sobre vampirismo muito interessante e que eu gostaria de ter lido antes. Mas, verdade seja dita, tanto em Drácula quanto em outras obras góticas (como Carmilla e Entrevista com o Vampiro), é comum notarmos uma dose de “elitismo” e com isso quero dizer que seus protagonistas costumam ser sempre pessoas da elite, aristocratas, membros de famílias ricas ou, pelo menos, suficientemente abastadas.
Inclusive, em Drácula há uma passagem (se não me falha a memória, é em um dos trechos do diário escrito por Mina Harker) em que um personagem declara que a caça ao monstro Drácula só está se realizando graças à predisposição de Lorde Godalming (creio que ele é o membro mais rico da equipe) em usufruir de sua fortuna e influência para fornecer os meios necessários para perseguirem e caçarem Drácula; o que inclui passagens de trem, aluguel de lanchas, compra de armas e munições, hospedagens, etc.
Eu compreendo que, em dadas circunstâncias, um personagem rico pode viabilizar uma aventura que seria inverossímil de outra forma. Por exemplo, se todos os membros da equipe que se encarrega de perseguir e caçar Drácula fossem membros da classe operária, não seria plausível que eles pudessem deixar seus empregos e viajar por dias sem conta até a Transilvânia para dar cabo de um vampiro secular. Afinal, eles perderiam seus empregos e seu sustento, não teriam como bancar as dispendiosas despesas relacionadas à aventura e não teriam a influência necessária em determinadas passagens da aventura.
Por outro lado, me incomoda um pouco todos os membros encarregados de perseguir Drácula pertencerem de alguma forma à elite, à aristocracia e ao fato de que os escritores desse período não pudessem usar sua criatividade e imaginação para mostrar outras classes sociais em suas histórias ou, que mostrassem outras classes dando-lhes o devido valor e, com isso quero dizer que em Drácula, a classe trabalhadora é mostrada apenas como uma classe que “serve” para movimentar a história quando os protagonistas precisam de uma empregada para “sair correndo assustada”, um dono de hospedaria para “fazer o sinal da cruz” e um capitão de navio para dizer que “o navio parecia estar sendo guiado pelo diabo” ou um grupo de ciganos para serem “servos do diabo”.
No que diz respeito aos personagens ciganos presentes na história, eu achei que Bram Stoker escolheu os ciganos aproveitando-se da “xenofobia” e da superstição com que esse povo é tratado há séculos. Nada mais “verossímil” que dizer que um povo pagão que é mal visto por católicos fervorosos é formado por pessoas que trabalham para o diabo (sendo o diabo aqui, em questão, o próprio Drácula). Faço novamente uma crítica aqui: Bram Stoker poderia não ter chamado esse grupo de pessoas de ciganos e não ter contribuído ainda mais com a má fama que esse povo possui e que possui por pura superstição e ignorância de pessoas que se julgam civilizadas. Ainda assim, compreendo as escolhas que o autor fez, embora pudesse ter feito diferente.
Apesar de todos esses pontos, Drácula é uma obra interessante e obrigatória para quem gosta de histórias de vampiros.
Eu compreendo o motivo de Drácula ter sido escrito da forma que foi: com um núcleo de protagonistas majoritariamente elitizados. Vemos isso também em outros gêneros, como a fantasia. Mesmo a obra de Tolkien ou pelo menos os seus livros mais famosos (O Senhor dos Anéis e O Hobbit) também são elitizados: os protagonistas são quase todos formados por pessoas da alta sociedade: seja uma família de abastados hobbits, o filho de um rei elfo, um príncipe em busca do trono, o filho de um grande comandante militar, o filho de um rei dos anões, etc… Acredito que em O Senhor dos Anéis, o membro mais “classe trabalhadora” em toda a aventura é o Sam e, bom… Agora sabemos porque o Sam é o herói dessa história e porque todos amamos o Sam.
Voltando para Drácula, quero reforçar aqui que o meu objetivo com essa análise da obra não é falar mal dela ou dizer que o livro é ruim. Eu adorei ler Drácula (de verdade), assim como adorei ler Carmilla. Aliás, entre ambas as histórias, eu prefiro Carmilla (acho que apenas por uma questão de gosto pessoal), embora a história dessa vampira seja muito parecida com a de Drácula quanto aos aspectos que eu estou criticando: é uma história elitista e que enfatiza muito o que se espera da mulher nessa sociedade hipócrita quanto às questões sexuais e amorosas, e a forma como os vampiros são destruídos e o motivo pelo qual são destruídos transmitem uma mensagem negativa sobre como devemos lidar com mulheres que julgamos “tocadas pelas trevas”. Apesar das críticas, ambas as histórias; tanto Carmilla quanto Drácula, são repletas da atmosfera gótica que os fãs de histórias de terror podem esperar.
Drácula vai além de Carmilla em alguns aspectos; a obra explora o costume (provavelmente um costume aristocrático) de escrever em diários. Apresenta cenários variados com atmosferas diversas; afinal, se trata de um romance que, além de gótico, possui um aspecto aventuresco que se apresenta por meio das viagens que os protagonistas empreendem desde o início da trama, pelos mais variados motivos (incluindo o próprio Drácula que empreende a viagem da Transilvânia para Londres a fim de colocar em prática seu plano nefasto). O que eu achei mais interessante no começo de Drácula, contudo, foi o seu começo, no Castelo na Transilvânia. Ali vemos Drácula falar mais e vemos também um verdadeiro cenário de terror em torno do protagonista Jonathan Harker. A sensação de apreensão é constante e tememos por Jonathan desde o princípio. E é exatamente isso que buscamos em histórias de terror: o medo.
Vou ficando por aqui. Mas nos vemos novamente na próxima leitura sombria 🧛♂️