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Este é um poema gótico que eu escrevi para compor o repertório de canções do povo das mandalas errantes; sim, os carismáticos e misteriosos Suna Mandís.
Mas esta não é a versão final desta canção e ela poderá sofrer modificações conforme a revisão deste livro prosseguir...
Até lá, deixo essa versão (pela segunda vez) aqui no blog.
Deixe-me lhes contar uma velha história
Desde que nos lembramos,
na longitude do tempo,
sabemos que nas florestas do mundo todo
ecoa um triste lamento.
É lá que habita o terrível Tigre.
Sim, O Tigre!
O Selvagem infame!
E de suas entranhas ouvimos
os sórdidos acordes da fome.
Rastreando na selva,
espreitando na treva,
em busca de Carne e sangue
ele vaga sob o manto da noite.
Recebendo a vida
em troca de ter dado a morte.
Tem o espírito de uma verdadeira fera,
criatura da noite,
parida das entranhas escuras
dos abismos insondáveis da terra.
Ora, meus amigos!
A morte sente fome
e este ciclo tem um nome;
é a dança visceral,
a valsa ancestral
da inofensiva ovelha e do Tigre letal.
Mas há outros personagens
nesta nossa história de brutalidade e dor.
Há muito sabemos
que às margens dos rios e mares do mundo
há muito habita outro predador.
Falo do famigerado pescador,
um caçador também letal,
que vive de Peixe e de sal.
Os frutos do mar
é o que desde sempre ele busca,
guiando suas embarcações,
espreitando atrás de seus arpões,
persegue os cardumes em fuga.
Navega ao sabor do vento,
ao sabor da sorte.
Recebendo a vida,
Em troca de ter dado a morte.
Tem o espírito daqueles feitos para matar,
nascido das entranhas escuras
dos mais profundos abismos do mar.
Esta é mais uma entre tantas
canções de brutalidade e dor.
Esta é mais uma
das canções de caça e de caçador.
Ora, meus amigos!
A morte sente fome
e este ciclo tem um nome.
Canção dos que sentem do sangue o sabor.
É a valsa visceral.
É a valsa do arpão letal.
É a valsa do peixe e do pescador.
Há muito aprendemos.
Há muito sabemos.
Basta nos sentarmos
para rememorar
Este velho conhecimento.
Quem criou o Gado,
quem encheu os mares de salmões.
Deu presas ao tigre
e também ensinou a fabricar arpões.
Quem contaminou o tigre com a fome,
criou sua cura com a carne do mais fraco
e temperou este elixir com o sangue do gado.
Quem criou o pescador
encheu-o de uma insaciável dor;
um vazio que nunca abandona o estomago do caçador.
A dor dos que vivem,
a dor dos que dão a morte para ganhar a vida,
a dor daqueles que tem no sangue dos outros a sua vital bebida.
Um vazio que nunca se contenta
com as vidas que toma.
Um vazio que só se aplaca
quando a chama da sua própria vida enfim se apaga.
Oh! Terríveis Criadores,
que navegaram o mar do caos,
atravessando colossais tormentas,
até atracarem em uma Angra
além da eterna noite invernal.
Vieram para aportarem às margens do vazio.
Vieram do submundo
subindo as correntezas de um infindável rio.
Vieram com estes teus olhares insondáveis,
que nos parecem cheio de um eterno descaso.
Vieram para deixar a sanidade do mundo espalhada em mil pedaços.
Vieram por sobre as ondas titânicas,
transportando uma miríade de loucuras.
E nos revelaram muitas delas,
com suas vozes doces e sardônicas.
Vieram para colapsar as praias do vazio,
virar o mundo do avesso,
e torná-lo
um mundo cheio de entes travessos.
Oh! Terríveis Criadores,
que a tudo temperam
com este triste paradoxo.
Oh! Terríveis Criadores,
que em sua sanha enlouquecida
escolheram este mundo
para o encherem com o seu caminho ortodoxo.
Quão terrível é a verdade que vislumbraram
nas forjas do infinito.
Quando encheram este mundo
com esta sua lógica sem sentido.
Uma piada,
imortal e insensível,
fadada a ecoar por todo o sempre…
Arrancando gargalhadas frias
com um senso de humor a nós incompreensível.
Uma piada que ecoa.
Uma piada que vibra.
Uma piada que corta…
As teias,
invisíveis e frágeis,
da razão…
Uma piada que soa,
terrível e truculenta,
como um hino à eterna destruição.
Uma piada que soa,
arrancando gargalhadas turbulentas
que estremecem o mundo,
revirando suas entranhas e deixando-o em tumulto.
Uma piada que ecoa,
com um timbre único,
um timbre original…
Arrancando gargalhadas;
de criaturas tão soberbas,
de criaturas tão superiores,
que estão acima da nossa compreensão de bem e de mau.
Mas sigamos todos em frente,
caçadores e Presas.
Pois somos Frutos da terra e do mar,
somos seus filhos,
e ao mesmo tempo somos os seus pais.
Pois se das profundezas escuras nascemos,
se dela nos alimentamos,
se dela somos uma extensão transitória…
A ela,
no fim,
retornaremos,
deixando para trás
somente história.
Somos os filhos dos que já morreram.
Seremos os pais de quem consumirá nossa carne e sangue.
Nascemos de uma Mãe,
de quem seremos a presa,
a quem serviremos de alimento,
a quem nos fundiremos
para nos tornarmos parte deste grande pesadelo.
Seremos os pais
daqueles que nascerão
de nosso próprio sangue.
Seremos o caçador
que reclamará estes filhos
em uma valsa cíclica
de vida
e de morte.
A valsa de quem foi para permitir quem é.
A valsa de quem é às custas de quem deixou de ser.
A valsa de quem deixará de ser, para permitir quem será.
A valsa
embalada por notas de prazer e de dor.
Esta ancestral valsa…
do Tigre e do Pescador.