Ogro Subterrâneo: Monstro, Bestiário e o Apetite de Nero

Bestiário dos Monstros: o Ogro, origem, evolução e o significado do monstro

Imagem dramática e escura de um Ogro musculoso e pensativo olhando para um homem que se transforma em monstro ao ver seu reflexo em um espelho de obsidiana. O Bestiário dos Monstros está aberto na mesa.

I. O Encontro no Limiar: Um Turista na Montanha

Eu estava em uma das encostas do Monte Silva, no topo, sentado sobre uma pedra musgosa, aproveitando o ar rarefeito, fresco e limpo que só a altitude proporciona. O cheiro de pinheiro, eucalipto e terra úmida era um bálsamo para mim, o som do vento nas árvores, uma canção ancestral. Lá embaixo, as luzes dos vilarejos cintilavam, e com o vento, vinha o cheiro enjoativo da fumaça doce e o miasma do pensamento citadino.

Foi quando o ouvi. Não o cheiro de carne fresca (que sempre me agrada), mas o som de passos hesitantes e a respiração ofegante de um humano, tentando escalar a trilha. Quando ele me viu, empoleirado sobre a pedra, ele congelou. Eu sou grande, grotesco, e sou o que sou. Seu medo era a prova do seu pensamento atrofiado.

No entanto, o tolo não correu. Pelo contrário. Deu um passo à frente, segurando um gravador digital.

— Ogro Subterrâneo! — ele disse, com a voz esganiçada, tentando soar corajoso. — Eu sou Bóris, um explorador fascinado por monstros. Li sua última crônica e, sabendo dos riscos, vim aqui. Eu quero fazer uma Entrevista com o Ogro, se me permite a péssima referência.

Eu ri, um som grave que ecoou nas pedras.

Entrevista com o Ogro? Sabe, essa piada não tem a mesma graça quando o entrevistador pode se tornar a refeição.

Bóris era um explorador que, fascinado por Ogros, queria, por motivos pessoais, compreender melhor nossa história, onde vivemos, de onde viemos, etc.

Eu o encarei. A curiosidade humana é um veneno, mas também é o único impulso que o salva da estagnação.

— Muito bem, curioso. Eu aceito. Mas a verdade é sempre mais pesada que um corpo humano. Venha. A caverna é minha. O ar está gelado aqui fora, e minha fogueira já arde.

Guiando-o pelas galerias profundas esculpidas pela natureza nas entranhas da montanha, chegamos ao meu refúgio. É um amplo salão subterrâneo, uma câmara grande, espaçosa, onde o ar é límpido e até o eco é musical. É o ponto de encontro para meus convidados (feras e monstros de toda estirpe, é claro). Gárgulas horrendas, ninfas belas e cavaleiros misteriosos, estátuas em nichos, pareciam observar a cena com uma apreensão silenciosa.

Apontei para uma mesa maciça no centro.

— Sente-se. Eu adoro café e tenho aqui o melhor. Está quente e forte no braseiro. Há hidromel no barril, que só reservo para convidados, pois eu não ingiro álcool. Sirva-se. Em breve, um golem virá servir os aperitivos. Eu o instruí a preparar algo exótico para o senhor.

Seus olhos correram da bebida para a escuridão dos túneis, cheios de suspeita. Ele espera lodo e podridão. O lodo não está na minha caverna, mas na mente dele, que espera que um Ogro sirva carniça.

Peguei um volume pesado de uma prateleira maciça. O BESTIÁRIO DOS MONSTROS, com suas páginas amareladas de bordas douradas. Abri-o com um ruído seco no centro da mesa de pedra, encontrando a seção do Ogro.

Podemos começar?

Nesse instante, um berro horrendo pareceu emergir de câmaras profundas do Monte Silva, ecoando pelas galerias até onde estávamos, fazendo Bóris saltar da cadeira.

Eu soltei um riso curto, grave.

— Não se preocupe, explorador. A entrevista pode começar. Eu já estou de posse de todas as informações que preciso sobre Ogros. Cada um de nós é um monstro em particular, mas o Bestiário nos dá aquilo que é comum. Vou me concentrar no que somos, mas vez ou outra, você vislumbrará o que eu sou.

Bóris riu nervosamente, visivelmente assustado, e finalmente fez sua primeira pergunta.

Então... o que é um Ogro?

II. A Galeria Sombria: O Catálogo de Devoradores na Literatura

— Antes de lhe dar a definição fria do dicionário, vou citar os nomes de alguns Ogros famosos e discorrer um pouco sobre suas histórias. Para entender o que somos, você deve ver o que fomos.

Um ruído alto e súbito, como o bater de asas grandes, passou pela entrada da caverna. Bóris estremeceu, os olhos fixos na sombra fugaz.

— A resposta está em seus contos. Os Ogros são a desumanidade travestida de força.

O Proto-Ogro: Lendas Épicas (Séculos VIII – X)

— O medo do devorador é mais velho que a palavra.

  1. Grendel e a Mãe de Grendel (Beowulf):

    — O primeiro e mais puro. Grendel era um temível ogro devorador de homens, um ser da escuridão, que atacava o salão real de Heorot e se banqueteava com os guerreiros. Ele era, segundo o poema anglo-saxão, descendente direto de Caim, o primeiro assassino. Ele não era a selvageria natural, mas o exílio de Deus, o humano que caiu. Sua mãe, a bruxa marinha de pele grossa, representa o ciclo de violência não-civilizada. Ambos foram destruídos pelo herói Beowulf, solidificando a vitória da ordem.

O Ogro na Literatura Clássica (Séculos XVII – XIX)

— Perrault não nos criou, mas nos deu um nome e nos jogou dentro de suas casas.

  1. O Ogro de Sete Léguas (O Pequeno Polegar):

    — O arquétipo mais famoso, um gigante que representa a tirania patriarcal e o canibalismo doméstico. A marca registrada dele? "Sinto cheiro de carne fresca (ou carne de cristão)". Seu poder eram as Botas de Sete Léguas. Ele foi derrotado por sua falha intelectual: a astúcia do Pequeno Polegar fez o Ogro, em sua fúria cega, massacrar as próprias filhas. É a lição mais clara: a inteligência sempre come a força bruta.

  2. O Ogro Metamorfo (O Gato de Botas):

    — Este se distinguia pelo poder da metamorfose. Podia se transformar em qualquer criatura: um leão, um rato. O Ogro do castelo foi comido pelo Gato de Botas após ser desafiado a se transformar em algo minúsculo. O monstro que se torna pequeno demais para ser temido, perde a cabeça para o gato de um moleiro.

  3. Han da Islândia (Victor Hugo):

    — Uma figura do caos selvagem e anárquico do século XVII. Han da Islândia é o bandido lendário, um quase-demônio, que se alimenta de sangue humano nas regiões remotas da Noruega. Hugo o usou para criticar a sociedade. O Ogro, aqui, é a besta anárquica que se opõe à ordem social podre.

O Ogro na Mídia Pop Moderna (Século XX – Atual)

— Evoluímos da floresta para a tela, mas o apetite permanece.

  1. Os Orcs de O Senhor dos Anéis:

    — Embora Tolkien os chame de Orc, ele traça a linhagem ao nosso Orcus latino. São a massa desordenada e descartável, forjada para a guerra. Eles são a prova de que o Ogro se tornou um conceito: a brutalidade sem mente, pronta para servir o mal maior.

  2. Os Ogros de Jadis (Crônicas de Nárnia):

    — São o instrumento de opressão, a tropa de choque da Feiticeira Branca. Eles servem para reforçar que o monstro é um servo da vontade autoritária, o braço forte da tirania.

  3. O Ogro de Fantasia Genérico (RPG como D&D):

    — Estes são os idiotas, os grandes, fortes e estúpidos. Humanoides gigantescos, com inteligência baixa e apetite por Halflings e Elfos. Eles são a nossa versão mais simplificada, feita para ser abatida por adolescentes com espadas. No entanto, geraram subespécies astutas, como os Oni/Ogre Mages, que desenvolveram inteligência e magia.

  4. O Ogro Enfeitiçado (Cavalo de Fogo):

    — Este é o Ogro que não quis ser Ogro. Um nobre humano, Kent, transformado em monstro por feitiço. A monstruosidade não é inata, mas uma maldição externa. A salvação dele foi a libertação, não o confronto fatal.

  5. O Ogro Sádico e o Doméstico (As Aventuras do Caça-Feitiço):

    — A série os classifica de inofensivos a letais (Boggarts). Há o Ogro sádico que esmaga e se delicia lentamente com o sangue, e há o Ogro Doméstico, que é um guardião mantido sob controle. Prova que o Ogro pode ser domesticado, desde que respeitado.

  6. Shrek (Cinema):

    — A antítese do Ogro. Ele retém a aparência brutal, mas tem um coração do tamanho do sistema solar e busca a autenticidade. A crítica dele é dirigida à civilização, onde a verdadeira maldade é transferida para os humanos ambiciosos e hipócritas.

III. O Dicionário da Danação: A Etimologia Sombria

Bóris parecia abalado com a profundidade da lista.

Afinal, depois de tudo isso, como o dicionário ousa simplificar a coisa toda?

— É a primeira camada da verdade, aquela que a civilização aceita.

Ogro: substantivo masculino. 1. Criatura imaginária assustadora, devoradora de seres humanos. 2. Pessoa assustadora.

Eu bati a mão na página de pedra do Bestiário.

Imaginário? — A palavra cuspiu de meus lábios. — Isso não está totalmente correto. Eu estou aqui, vivo, respirando e faminto. A lenda se funde à história.

— Para entender o que somos, o monstro deve ser traçado até sua raiz. O termo que Perrault usou vem do italiano Orco e, mais além, do latim ORCUS. Orcus era o deus da morte, do submundo e da punição, na mitologia romana.

— O Ogro não é apenas uma brutalidade natural. Ele é uma punição infernal e uma devoração final. O ato de devorar, para o Ogro, não é só sobre encher a barriga, mas sobre negar a humanidade da vítima, impedindo a passagem para o pós-vida. Somos um agente de danação.

Então, o Ogro é o medo do apagamento total, do esquecimento da alma.

E a sua lenda tem uma origem única, ou é algo que nasceu em vários lugares?

— Global, meu caro. Global. Nossa fome não conhece fronteiras. O Ogro se fixou na mente ocidental graças a Perrault e d'Aulnoy no século XVII. Isso transformou a ameaça selvagem em uma ameaça potencialmente doméstica, o pai de família tirânico que come gente.

IV. O Contexto Histórico: A Confusão da Barbárie

Você mencionou que o Ogro não é apenas folclore, mas história. Quais medos reais inspiraram o monstro?

Um barulho ritmado, como o tilintar de metal com pedra, começou no túnel que levava à forja. Eu estava polindo meu machado mais cedo, e isso deve ser o Golem limpando o local.

Bóris parou de escrever e franziu a testa, incomodado com a intrusão do trabalho no momento do pensamento.

— Não se preocupe. O golem é apenas meticuloso com a limpeza. Já deve estar perto dos aperitivos.

— Sobre sua pergunta, o Ogro é a manifestação cultural de medos concretos.

  1. O Espectro do Canibalismo e a Fome: O Ogro é o tabu feito carne. Ele alertava a população a não se aventurar longe demais, onde encontrariam a selvageria latente nos próprios humanos sob estresse extremo.

  2. O Ogro como Estrangeiro/Pagão (O Outro): A propagação do Cristianismo exigiu a demonização do folclore pagão. O Ogro tornou-se a confusão da cultura europeia a respeito de estrangeiros e aqueles que viviam fora das jurisdições eclesiásticas. Ele era a forma da Igreja tornar monstruoso tudo o que era considerado Pagão (o Heathen).

  3. O Modo de Vida Recluso (O Homem Selvagem): Somos ligados ao mito ancestral do Homem Selvagem (Homo Sylvestris). Éramos os eremitas, as pessoas que abandonavam as normas sociais e religiosas para viver na floresta, buscando, ironicamente, pureza e reclusão. O Ogro nos lembra que a sociedade cria seus monstros ao exilar o que não compreende, transformando a reclusão filosófica ou cultural em ameaça canibal.

Então, o Ogro existe para demarcar a fronteira entre o que é "eu" e o que é "monstruoso"?

— Exatamente!

V. Anatomia do Apetite: Tirania e Fraqueza

Qual é a natureza fundamental do Ogro, e como ele se comporta?

— A natureza do Ogro é definida pelo apetite bruto e pela regressão à selvageria. Somos a projeção do medo primordial de ser consumido.

— Nossa aparência é, invariavelmente, grotesca. Nossa feiura física é a manifestação da nossa maldade, mas também o rótulo que nos impuseram. O comportamento é dominado pelo impulso predatório: "Sinto cheiro de carne fresca..."

O Ogro do Bestiário é o guardião do limiar.

— Nossos poderes e fraquezas: O Ogro folclórico é forte e massivo, mas paradoxalmente, tem fraqueza intelectual. Nossa derrota nas mãos do Pequeno Polegar é uma crítica poderosa. A inteligência sempre vence a força bruta.

E o que o Ogro representa para as culturas que o criaram?

— O Ogro representa o poder autoritário e tirânico que consome o futuro de seu próprio povo. Isso não é só sobre fome biológica, mas sobre fome de poder. Isso se manifestou na Fonte do Comedor de Crianças (Kindlifresserbrunnen) em Berna, um aviso cívico sobre a tirania. O Ogro simboliza o perigo estrutural e ético do poder descontrolado.

VI. Registros de Contato: O Medo Feito Pedra

Há registros históricos antigos de avistamentos ou contatos?

Um barulho de ossos chocalhando e um ruído abafado de mastigação vieram do túnel lateral. O Golem deve ter começado a servir o aperitivo.

Eu não pude evitar um sorriso, notando o medo na expressão do explorador. O medo é o tempero perfeito.

— Nossos avistamentos mais relevantes são simbólicos. A fonte de Berna é a prova de que o medo do devorador era tão grave que se tornou arte pública.

A utilidade retórica do Ogro canibal manifestou-se na projeção transatlântica. Quando Colombo chegou ao Novo Mundo, ele aplicou o termo "canibal" aos povos nativos (os Caribes). Assim, o Ogro se tornou um instrumento geopolítico para desumanizar o "Outro" no contexto da colonização.

— E no Japão, o Oni é o nosso equivalente, um demônio que atua como agente de punição e doença. A loucura é global, meu caro.

VII. Interpretação do Bestiário: A Advertência do Monstrum

— Para terminar, voltemos ao Bestiário. A etimologia da palavra "monstro" é complexa, e sua função é nos ensinar algo.

O senhor está dizendo que a monstruosidade pode ser um aviso?

— A palavra "monstro" vem do latim monstrum, que significa "prodígio", "portento" ou "sinal divino" e deriva do verbo monere, que significa "advertir", "avisar" ou "instruir". O monstro não era aterrorizante; era um aviso, um agouro dos deuses.

O que o monstro Ogro nos adverte?

— O Ogro clássico é o aviso sobre o perigo do apetite descontrolado. Ele é a ausência de moderação e limites, e adverte que o caminho mais fácil — o abandono da razão em favor da força e da fome — leva à barbárie.

Mas o aviso mais profundo, viajante, é que o Ogro não é só o bruto da floresta. Ele evoluiu. O terror migra do exterior para o interior. O Ogro nos lembra que a barbárie não é apenas uma força externa, mas uma potencialidade interna, pronta para se manifestar sob a máscara da civilidade. O maior perigo reside não no monstro lá fora, mas na fome que vive dentro do homem.

VIII. A Última Refeição: O Monstro no Espelho

Bóris estava estranho. Sua pele estava mais grossa e escamosa, seus olhos injetados, e ele respirava com dificuldade. Ele havia compreendido demais.

— E finalmente... — Bóris disse, a voz rouca, quase um grunhido. — O que você, Ogro Subterrâneo, come?

Eu me inclinei sobre a mesa de pedra, meu rosto grotesco próximo ao dele.

— O Ogro come o tabu, a decência, a confiança. Mas o Ogro que vive no subterrâneo... ele prefere a ironia.

Eu apontei o dedo para o Golem que entrava, carregando uma bandeja pesada de pedra. A bandeja não continha nada além de um espelho de obsidiana polida, que eu havia colocado ali de propósito.

Olhe para o que você realmente deseja. Não veio atrás de um Monstro? A lenda do Ogro é o que te alimentou em sua estada nestas profundezas...

Bóris virou-se para a superfície negra e polida. O reflexo que viu não era o explorador de óculos que havia entrado na caverna, mas uma figura de testa proeminente, pele grossa e olhos injetados, com o apetite voraz do Ogro Subterrâneo; o apetite de quem é como Nero e deseja o Impossível.

O eco final de um berro desesperado rasgou as masmorras, abafado pela pedra.

— O que eu me tornei?!

Eu sorri e disse "quem olha para o abismo por muito tempo, acaba sendo engolido pela escuridão", enquanto o golem deixava a bandeja. O jantar estava servido. 

Ilustração de Dark Fantasy da cena final da crônica "O Ogro Global". O explorador Bóris olha, horrorizado, para seu reflexo grotesco no espelho de obsidiana, enquanto o Ogro Subterrâneo sorri ironicamente. Perfeito para fãs de bestiários, mitologia Orcus, RPG de terror e contos góticos. O medo de ser devorado é o medo de se tornar a própria besta.

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