A Maldição de Frankenstein: Criar Monstros, Golems e a Senda da IA
Quem Não Gostaria de Fabricar Seus Próprios Monstros?
É uma tentação antiga, quase um instinto primal do gênio. Se você escreve, desenha, programa ou simplesmente sonha, em algum momento já se pegou pensando: "Quem não gostaria de fabricar seus próprios monstros?"
Afinal, ser o Criador, o Deus por trás das regras e da própria vida, é o ápice do hubris — a arrogância que, na tragédia grega, sempre precede a queda.
O fascínio por criar uma vida artificialmente, um ser senciente que carrega nossa assinatura e, invariavelmente, nosso castigo, não começou com o Dr. Victor Frankenstein. É um tema que acompanha a humanidade desde que passamos a questionar o mistério da alma e da matéria.
A Antiga Senda da Criação Artificial
Se voltarmos às fontes, o desejo de dar vida ao inanimado começa no folclore e na mitologia do Oriente Médio.
Os Golens são a manifestação desse sonho, figuras de barro animadas por meio de rituais e palavras sagradas. Eles são a "máquina" primitiva: fortes, úteis, mas sempre com o potencial de se tornarem incontroláveis.
Dali, a tocha da ambição passa para os Alquimistas. Homens (e mulheres) que, em seus laboratórios esfumaçados, buscavam não apenas transformar chumbo em ouro, mas criar o Homúnculo, o pequeno homem artificial, por meio de processos químicos e esotéricos.
O ápice dessa jornada chega no auge da literatura gótica com a jovem Mary Shelley, que criou a história definitiva de seu tempo: a do Dr. Victor Frankenstein e sua Criatura. No romance, ela fundiu a ciência e o terror existencial, fazendo de Victor o "Prometeu Moderno".
De Alquimista a Engenheiro de Software
A história desse monstro fabricado, que se torna um pária exilado pelo terror de seu próprio criador, continua a me inspirar profundamente.
Na minha saga Cataclismo, estou explorando essa senda com um antagonista que tem muito em comum com o Dr. Frankenstein. O Gorgo, o alquimista por trás do rastro de caos e morte que assombra o vilarejo de Bruma em "O Fantasma da Mortalha de Fogo," nutre um desejo sombrio que ecoa a ambição de Victor: o desejo de reescrever a vida. Mas as similaridades param por aí. É uma reflexão que pretendo elucidar em breve.
Nos tempos modernos, o mito da Criação Artificial assumiu uma nova roupagem. Hoje, ele se manifesta na Inteligência Artificial. Quantos robôs e sistemas sencientes na ficção científica não são uma reencarnação metálica do Golem, do sonho dos alquimistas e do reflexo da Criatura de Frankenstein?
É uma questão que me persegue desde o meu trabalho de conclusão de curso como Bacharel em Ciência da Computação: o que é a vida e o que é a inteligência? Seria algo que emerge de forma (talvez espontânea) caótica em um sistema composto por elementos simples e corriqueiros? Quando criamos um sistema complexo, estamos inevitavelmente nos tornando cientistas/deuses com um fardo moral?
A permanência dessa discussão prova que, não importa o século, o maior medo não é o monstro costurado, mas sim a responsabilidade ética do criador.
O Criador e a Criatura: A Visão de Mary Shelley e a Lente de Del Toro
Aproveitando que o assunto está em alta por causa do aguardado filme de Guillermo del Toro, na Netflix, o debate sobre o tema só se intensifica. O que a nova versão nos diz sobre esse mito duradouro?
Eu não li Frankenstein (ainda, mas o livro está na minha estante, à minha espera, junto com outros tijolos de celulose e tinta) e ainda não parei para assistir a esse novo filme da Netflix, mas conheço bem a história (e o tropos): é um clássico que foi recontado exaustivamente na TV, em desenhos, quadrinhos e filmes. Além disso, a própria história da Mary Shelley (não só a dela como a de todos os escritores do período gótico) bebem de fontes ainda mais antigas.
Resolvi então pesquisar sobre Frankenstein, para amadurecer a reflexão sobre esse tema tão explorado na fantasia sombria (e também na ficção ciêntifica: quem puder, que explique a distinção entre esses dois gêneros, que, apesar de separados, às vezes se cruzam de forma fantástica e singular, para criar verdadeiras obras primas de monstruoso terror).
A pesquisa que fiz sobre a comparação entre a obra original de Mary e a visão de Del Toro aponta para diferenças temáticas cruciais, que refletem como a sociedade moderna interpreta a culpa:
O Deslocamento da Culpa: Livro (1818) vs. Filme (2025)
1. Definição do Criador (Victor Frankenstein):
No livro de Mary Shelley (1818): Victor é o Prometeu Moderno, irresponsável e vítima de sua própria ambição, com uma moralidade cinzenta. A monstruosidade é uma dualidade entre ele e sua criação.
No filme de Guillermo del Toro (2025): Victor é um vilão assertivo, a personificação do hubris, ego e falhas humanas. O filme utiliza uma forte crítica ao orgulho para condená-lo.
2. A Monstruosidade e a Culpa:
No livro: A culpa é difusa e trágica. A Criatura é responsável por "brutos assassinatos" em vingança, mas a monstruosidade reside na irresponsabilidade de Victor e na rejeição social. A moralidade é ambivalente.
No filme: O foco é na Monstruosidade Humana, ou seja, no ego e na falha ética de Victor. A Criatura é um ser de empatia e bondade oprimido, com a violência transferida para Victor, que é retratado como o assassino ativo de sua própria linhagem, incluindo Elizabeth.
3. O Final da Criatura:
No livro: O final é pessimista. Após a morte de Victor no Ártico, a Criatura está devastada e decide construir sua própria pira funerária para se consumir nas chamas, sugerindo um suicídio e o fim do legado.
No filme: O final é redentor e autônomo. Victor, antes de morrer, reconhece sua monstruosidade e pede perdão à Criatura, que o perdoa. Longe do fatalismo, a Criatura opta por viver, caminhando livre em direção ao sol.
A conclusão mais interessante é que Del Toro, conhecido por humanizar figuras marginalizadas, faz uma concessão dramática significativa ao deslocar a culpa para tornar Victor o vilão explícito, condenando-o por seu pecado de orgulho. O valor de uma adaptação, portanto, reside na sua capacidade de dialogar com a essência temática da obra, mesmo que ignore a fidelidade estrutural.
O mito de Frankenstein continua, não para nos fazer temer o monstro, mas para nos fazer temer o que está dentro do cientista, do autor, do programador, ou de qualquer um que ouse brincar de ser Deus sem a devida responsabilidade.

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