Saohime: A Deusa Japonesa da Primavera que Encontrei em Minha Busca por Sombras
É fascinante como a pesquisa para um projeto literário nos leva por caminhos inesperados. A jornada para dar forma a PROJETO MONTERUGIDO me fez buscar histórias de tragédia e redenção, de dualidade e de beleza que nasce nas cinzas. Pois, como bem sabemos, a primavera não é apenas flores e cores; é também a vida que se renova sobre o que se perdeu.
Foi nessa busca por inspiração que esbarrei em uma figura notável do folclore japonês: Saohime. Minha afinidade com as lendas nipônicas vem, claro, da minha juventude devorando animes e mangás, e encontrar uma deusa da primavera com uma história tão complexa e melancólica foi como descobrir uma relíquia esquecida. Saohime é a prova de que a dualidade entre o belo e o trágico é um tema universal, que ressoa desde os mitos gregos até as lendas orientais.
A Deusa dos Registros Antigos
Para entender a história de Saohime, é preciso olhar para os textos mais antigos do Japão: o Kojiki (712 d.C.) e o Nihon Shoki (720 d.C.). A existência de sua lenda nessas duas crônicas — que serviram para legitimar a linhagem imperial — eleva-a de uma simples lenda oral para uma parte integral do cânone mitológico-histórico do país.
Curiosamente, a história da deusa é contada de forma diferente em cada um desses textos. O Kojiki, com seu estilo mais poético e folclórico, e o Nihon Shoki, mais formal e histórico, divergem em pontos cruciais. Essa discrepância, para um escritor, é uma mina de ouro. Ela mostra que o mito não é uma verdade única e imutável, mas sim uma série de tradições que os compiladores tentaram sintetizar, refletindo a rica e complexa natureza da mitologia japonesa.
A Tragédia da Imperatriz Consorte
A história de Saohime é, acima de tudo, uma tragédia. Ela foi a lendária imperatriz consorte do Imperador Suinin. Seu destino sombrio começou quando seu irmão mais velho, Sahohiko, a convenceu a conspirar para assassinar o imperador. Movida pela manipulação e por um ressentimento que ele nutria contra a corte, Saohime aceitou o plano. No entanto, sua lealdade e afeto pelo marido a impediram de cumprir o ato. Ao ver o imperador adormecido, ela confessou a conspiração em meio a lágrimas, que o acordaram.
A partir daí, as narrativas do Kojiki e do Nihon Shoki se separam de forma dramática:
* No Nihon Shoki, a história tem um fim mais direto: Saohime se refugia no castelo do irmão, mas, consumida pela culpa, recusa-se a sair durante o cerco militar e morre no incêndio.
* No Kojiki, a trama é muito mais folclórica e intensa. Saohime também se refugia no castelo, mas dá à luz seu filho, Homutsuwake (Senhor que possui o fogo), em meio às chamas. Depois, ela se liberta dos soldados de forma engenhosa, raspando a cabeça e deixando suas vestes, um ato simbólico de renúncia, mas acaba sendo morta pelo próprio Imperador Suinin.
Essas duas versões da mesma tragédia me fascinam. Elas nos mostram como a mesma história pode ser contada para servir a diferentes propósitos, seja para documentar uma história oficial ou para criar um drama mítico e simbólico.
A Deusa da Dualidade e da Efemeridade
Apesar de sua história trágica, o legado de Saohime é duradouro. Ela se tornou a kami que reside no Monte Saho e a deusa da primavera. O seu simbolismo reside na dualidade que personifica: a beleza efêmera da vida (as flores da primavera) e a inevitável tragédia da morte (sua morte por fogo e traição).
A lenda de Saohime, assim como as cerejeiras (sakura) que florescem magnificamente por um breve período antes de suas pétalas caírem, ecoa o conceito de mono no aware (a "patosidade das coisas"), a melancolia em face da beleza transitória da vida. Essa dualidade, a beleza que coexiste com a tristeza, é um tema que sempre me atrai e que, sem dúvida, me servirá de inspiração.
O Legado Silencioso de Saohime na Cultura Pop
É intrigante, no entanto, que uma figura tão rica em simbolismo seja notavelmente ausente na cultura pop contemporânea japonesa, tão conhecida por reinterpretar seu folclore. Enquanto criaturas como yokai e heróis de lendas de fantasia são frequentemente adaptados para animes e jogos, a história de Saohime, com seu foco em tragédia histórica e drama familiar, é menos adaptável a esses formatos.
A figura da deusa se desvaneceu da consciência popular, mesmo que seu nome ainda ecoe no Monte Saho e no Rio Saho, locais de festivais de primavera que já não a celebram. Isso nos mostra como a memória cultural pode ser fluida e como o significado de lugares e festividades pode ser reinterpretado com o tempo.
A lenda de Saohime é, no fim das contas, uma lembrança de que a primavera não é apenas um renascimento, mas um suspiro profundo que ecoa as alegrias e as dores de tudo o que foi. Ela é uma inspiração silenciosa, uma joia rara que encontrei no meio de minhas pesquisas, e que me ajudou a entender melhor as sombras que busco desvendar em meus próprios contos. E para um escritor que navega por mundos de fantasia sombria, não há descoberta mais valiosa do que essa.
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