Hinezumi: A Jornada Lendária do Rato de Fogo

As Raízes Míticas: Do Huoshu Chinês ao Hinezumi Japonês

Para entender o Hinezumi, precisamos voltar no tempo e cruzar o mar. A lenda original tem origem na mitologia chinesa, onde o ser é conhecido como Huoshu (火鼠). Textos clássicos descrevem a criatura habitando as "Montanhas de Fogo" no sul da China, vivendo dentro de árvores que queimam sem nunca serem consumidas. O Huoshu é retratado como um mamífero enorme, pesando entre 25 e 250 quilos, com um pelo fino e branco como a seda. Sua única fraqueza? A água, que é fatal para ele.

A parte mais fascinante dessa lenda não é a criatura em si, mas as propriedades mágicas de sua pele. Quando o pelo do Huoshu era tecido, ele se transformava em um "pano lavado com fogo" (huo huan bu). Acreditava-se que este tecido podia ser purificado e limpo ao ser jogado nas chamas, emergindo "branco como a neve". Análises de estudiosos, no entanto, sugerem que a lenda foi uma explicação mítica para um material real: o amianto. Os romanos já conheciam esse material, que tinha a notável característica de ser incombustível e de poder ser limpo pelo calor.

A lenda do Huoshu não é um caso isolado. Ela tem paralelos com a mitologia europeia, como a salamandra, outra criatura associada ao fogo. Essa lenda viajou e se transformou, sendo até mesmo reinterpretada no zodíaco chinês, onde o "Rato de Fogo" simboliza paixão, criatividade e resiliência.

Ilustração detalhada de um Hinezumi, o lendário yokai rato de fogo, em estilo de xilogravura ukiyo-e com traços de arte do anime Mononoke. A criatura, com pelagem branca e sedosa, emerge de chamas estilizadas. A imagem combina a tradição folclórica japonesa com uma estética moderna e dramática.


A Chegada ao Japão: A Bifurcação de uma Lenda

A lenda do Huoshu chegou ao Japão através da literatura, tornando-se conhecida como Hinezumi. A obra que cimentou sua presença no imaginário japonês foi O Conto do Cortador de Bambu (Taketori Monogatari), um dos textos mais antigos da literatura japonesa. Na história, a Princesa Kaguya desafia um de seus pretendentes a encontrar um "casaco de pele de Hinezumi". Essa adaptação é fascinante, pois o foco se move do "pano lavado com fogo" chinês para uma "pele de casaco" japonesa, tornando o item mais pessoal e orgânico. Além disso, a pele falsa obtida pelo pretendente é descrita como "azul-dourada", diferente da cor branca do tecido original. A familiaridade com a lenda já era evidente no Japão do século X, como demonstra o dicionário da época Wamyō Ruijushō.

Paralelamente à importação do mito chinês, uma lenda folclórica japonesa sobre uma criatura de nome similar já existia: o Kodama nezumi. Essa criatura, nativa do folclore da região de Tōhoku, é o oposto do gigantesco Huoshu. O Kodama nezumi é um ser minúsculo, um "rato de bola pequena" que habita as montanhas. Sua função é ser um "animal mensageiro" dos deuses da montanha. Sua característica mais notável é que ele incha e explode com um som mais alto que um tiro, servindo como um presságio de que os deuses da montanha estão irados. Os caçadores Matagi, que acreditavam nessa lenda, cessavam a caça imediatamente ao ouvir o som para evitar desastres.

No período Edo (1603-1868), conhecido como o "século de ouro" da cultura yōkai, essas duas lendas díspares podem ter sido agrupadas e até confundidas sob o nome "Hinezumi" por artistas e folcloristas. Essa compilação criou a ambiguidade que conhecemos hoje, onde o Hinezumi é um conceito mutável, que pode se referir tanto a uma criatura massiva e mítica quanto a um pequeno presságio.


O Hinezumi na Cultura Contemporânea: De Mononoke a Nioh

A figura do Hinezumi foi quase esquecida no período Meiji (1868-1912), quando o folclore yōkai foi visto como superstição, mas foi revitalizada no século XX pela mídia pop.

No universo do anime, uma das reinterpretações mais significativas está no filme Mononoke: Cinzas da Ira, de 2025, sobre o qual você pode ler mais detalhes nesse post. Nele, a criatura é um mononoke, um yōkai que nasce de emoções humanas negativas. O filme explora a lenda ao retratar o Hinezumi como uma manifestação de vingança e culpa no harém imperial. A lenda antiga é recontextualizada para discutir temas modernos de gênero, opressão social e as dinâmicas de poder, demonstrando como o folclore pode ser uma linguagem flexível para expressar novas ideias e críticas.

A reinvenção do Hinezumi também se estende aos jogos de vídeo. Em Nioh, ele aparece como um Espírito Guardião, uma entidade que concede habilidades ao jogador. A descrição do jogo reinterpreta a lenda de O Conto do Cortador de Bambu, afirmando que o pretendente de Kaguya falhou não porque o item era impossível de obter, mas por ter faltado determinação. O Hinezumi é transformado, portanto, em uma personificação da virtude da resiliência. Em Wo Long: Fallen Dynasty, o Huoshu retorna à sua forma mais tradicional como um inimigo demoníaco, um "rato grande e flamejante" cuja pele é um "pano de fogo" e que tem vulnerabilidade à água, reconectando-o às suas origens chinesas.


Conclusão: A Essência Mutável do Rato de Fogo

A jornada do Hinezumi é uma prova da natureza adaptável da mitologia. O termo não se refere a uma única criatura, mas a um conceito fluido que absorveu e fundiu narrativas de origens distintas. Ele começou como o mito chinês do Huoshu, uma lenda para explicar o amianto, e coexistiu com o presságio de ira divina, o Kodama nezumi.

Hoje, o Hinezumi não é mais apenas um animal mítico. Ele se transformou em uma metáfora para a resiliência em um jogo e em uma manifestação poderosa das emoções humanas em um filme. Ele se tornou um veículo para expressar novas ideias e críticas sociais, como as dinâmicas de poder e a opressão de gênero. A sua maleabilidade demonstra como a mitologia continua a se reinventar, refletindo as preocupações e os valores de cada nova geração. E se uma criatura tão antiga e complexa pode se adaptar, o que mais as sombras do folclore nos reservam?


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