Haja como se estivesse em um ritual, pois o Boticário está de volta. Preparem os seus incensos, ajustem os seus sinos e abram bem a mente. Para aqueles que me acompanham nessa jornada pelas brumas, já sabem que a aparição de um Mononoke não é um evento qualquer. É uma revelação, um diagnóstico de uma ferida oculta na alma humana. E agora, meus caros leitores, a ferida que nos assombra está no coração da paixão e da ira, manifestando-se em chamas no novo filme da saga: Mononoke The Movie: The Ashes of Rage (traduzido como "Cinzas da Ira").
Não se enganem, a jornada é sombria e a narrativa é intrincada. Apenas um mês se passou desde que o Boticário esteve sob a chuva, confrontando os fantasmas que se alimentavam da dor humana. E agora ele retorna a um dos lugares mais obscuros do Japão feudal: o Ōoku, o harém imperial.
E que lugar é esse? Um labirinto de beleza e intriga, onde cada sorriso esconde uma faca e cada gesto de submissão é um cálculo de poder. A nova diretora, Lady Botan, tenta limpar o rastro de caos deixado para trás, mas a semente da discórdia já foi plantada. O imperador, um ser etéreo e distante, se prende à ascensão de Lady Fuki, uma concubina de origem humilde, ignorando as regras que deveriam garantir uma linhagem forte.
Aqui, o jogo de poder se torna um veneno silencioso. As concubinas, prisioneiras de seus desejos e ambições, rivalizam em uma dança de morte sem derramamento de sangue, ao menos, até agora. A tensão é o ar que se respira no Ōoku. E é nesse cenário que o horror se manifesta. Pessoas começam a se transformar em cinzas. Combustão espontânea, um fenômeno tão aterrorizante quanto inexplicável. É o momento em que nosso enigmático Boticário entra em cena, com sua espada sagrada à espera da Forma, Verdade e Razão do monstro.
As Cinzas da Ira: Quando a Paixão Vira Fogo
O título não é um acaso, amigos. É a chave para desvendar o mistério. "As Cinzas da Ira" é a metáfora perfeita para o que acontece no Ōoku. O fogo aqui não é um simples elemento, mas a materialização da paixão e da ira reprimida. A chama do ciúme e do ressentimento, que arde silenciosamente no coração de cada concubina, ganha uma forma literal, se tornando uma doença interna que consome o corpo e o espírito.
O Mononoke que se manifesta neste filme não é um demônio externo que invade o harém. Ele é um sintoma, uma consequência direta do drama humano que se desenrola entre as paredes opulentas e sufocantes do Ōoku. São "filhotes de Hinezumi" que atacam aqueles que ameaçam bebês, revelando uma tragédia ainda mais profunda, ligada ao sofrimento materno e a conspirações que permeiam o lugar. O Boticário não está aqui para caçar um monstro. Ele está aqui para diagnosticar e expor uma ferida social, para dar uma forma tangível à dor invisível.
O que é um Mononoke? A Verdade por Trás do Espectro
Já discuti sobre isso em um post anterior sobre essa franquia, mas a verdade é que o tema é profundo e merece ser revisitado. Para aqueles que ainda confundem esta obra com a épica e fabulosa história de Hayao Miyazaki, é preciso esclarecer: a franquia da Toei Animation usa o termo mononoke de uma forma muito mais pessoal e aterrorizante. Ele não é um "espírito da floresta". É uma manifestação direta do sofrimento humano, do rancor, da inveja, do ciúme. Sua existência é uma sombra que a alma humana projeta.
O Boticário, o nosso caçador de espíritos, não usa a força bruta. Sua arma é a revelação. Sua espada sagrada, que permanece em sua bainha até que o ritual esteja completo, só pode ser desembainhada após ele identificar a Forma (Katachi), a Verdade (Makoto) e a Razão (Kotowari). Ele deve descobrir a história por trás do espírito, o rancor que o gerou, a lógica de sua existência. Somente assim, o espírito, que é uma "doença" vaga e abstrata, se torna um espectro com forma definida, que pode ser exorcizado.
O Hinezumi: Do Folclore à Metáfora da Dor
O filme não se contenta em apenas adaptar o folclore, ele o reinventa. O Hinezumi (火鼠, "rato de fogo"), uma criatura lendária do folclore chinês e japonês, é transformado em algo mais. Enquanto as lendas o descrevem como um ser que vive no fogo, com pelos que podem ser tecidos em um pano incombustível, o filme o utiliza como uma metáfora. Ele é a fusão do Hinezumi com o Kodama nezumi, o "rato bola" que explode com a ira dos deuses.
No universo do filme, o Mononoke Hinezumi não é um único rato, mas "filhotes", uma manifestação da dor de uma mãe e do rancor de seus filhos. Eles atacam aqueles que "machucariam bebês", transformando a lenda em uma tragédia sobre gravidez indesejada e o sofrimento materno no Ōoku. É uma reinterpretação que eleva o horror a um novo nível de densidade psicológica. A criatura folclórica se torna um símbolo, uma representação literal do horror que reside na alma humana e na opressão de uma sociedade.
A Nova Mitologia: 64 Guardiões e as 8 Espadas Kon
Há um detalhe que certamente fará os pesquisadores de folclore coçarem a cabeça. O filme introduz o conceito de "64 guardiões das 8 espadas Kon". Uma rápida busca em velhos pergaminhos e lendas não revela nada sobre essa mitologia. E por que? Porque, ao que tudo indica, é uma criação original da própria franquia. E isso é algo de que sou particularmente fã. Em vez de simplesmente copiar o folclore, o autor o expande, criando uma nova mitologia interna que se alinha com as ricas tradições da cultura oriental, onde os números 8 e 64 possuem significados simbólicos profundos. A franquia, em vez de se apoiar apenas em lendas existentes, constrói sua própria escuridão e seu próprio mistério, adicionando uma camada de originalidade que a torna ainda mais fascinante.
A Jornada Continua...
E assim, meus caros leitores, a saga do Boticário avança. O primeiro filme foi sobre a água, a purificação e a chuva que lavou a dor. Agora, o segundo é sobre o fogo, a paixão e a ira que consome tudo. E o que o futuro nos reserva? No final do filme, um novo título foi revelado, um presságio de que a jornada está longe de terminar: A Maldição da Serpente.
Preparem-se, pois a estrada à frente é escorregadia e cheia de veneno. O que o Boticário encontrará no terceiro capítulo? Que nova manifestação da alma humana ele terá que enfrentar? Só o tempo dirá. Por enquanto, fiquem com a certeza de que a escuridão que nos assombra é a que habita em nós mesmos. Até a próxima aparição!
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