Depois de um mergulho tão profundo no mundo sombrio e psicodélico de Mononoke, é natural que a curiosidade nos arraste para os recantos mais antigos da lenda. Aquela figura sinistra, o Karakasa, que se manifestou como a “Forma” do espírito vingativo no filme, não é apenas uma criação moderna. Ele tem raízes antigas, e para exorcizar seus segredos, precisamos entender sua origem. Peguem suas espadas e preparem-se, pois a caçada continua, agora por entre as páginas empoeiradas do folclore japonês.
O Que É o Karakasa?
Um Guarda-chuva com uma Alma Sombria
O Karakasa (ou Karakasa-obake) é um dos yokai mais icônicos do Japão. Sua imagem é imediatamente reconhecível: um guarda-chuva de papel de um olho só, com uma longa língua pendurada e uma perna com uma sandália geta, com a qual ele salta por aí. Mas ele não é um monstro comum; ele é um tsukumogami.
No folclore japonês, um tsukumogami é o espírito de um objeto inanimado que, após cem anos de existência, adquire uma alma. Pense em uma vassoura que começa a varrer sozinha ou uma lanterna que ganha vida. A crença nos tsukumogami reflete uma profunda reverência japonesa por seus objetos, alertando que o descarte ou a negligência de pertences antigos pode trazer consequências. É uma espécie de karma para coisas materiais: se você cuidar bem delas, elas podem servi-lo para sempre. Se as abandona, bem... elas podem voltar para assombrá-lo.
Origem e Lendas: Onde o Karakasa se Escondeu?
O Karakasa-obake começou a se popularizar durante o período Edo (1603-1868), um tempo de grande efervescência artística e de contos de fantasmas. Ele não é um yokai que surge de relatos de testemunhas oculares, como outros espíritos. Em vez disso, ele é um personagem que ganhou vida através de pinturas, gravuras, jogos de cartas (obake karuta) e peças de teatro kabuki.
Ele era frequentemente retratado no Hyakki Yagyō (A Noite da Parada dos Cem Demônios); sobre a qual já falei aqui no Blog nesse post. A Hyakki Yagyō é um desfile caótico de yokais que marchavam pelas ruas à noite. Em muitas dessas representações, ele é apenas uma figura cômica ou travessa, assustando as pessoas com travessuras inofensivas, como dar uma lambida oleosa nos transeuntes ou flutuar em dias de vento. Sua origem está mais na imaginação popular e no desejo de criar histórias fantásticas do que em lendas ancestrais.
A propósito, sou fascinado pela Hyakki Yagyō e não à toa, tanto o conceito dessa lenda como os animês que fazem uso dela são meus prediletos. Adoro mundo povoado por criaturas assombrosas como os Yokais.
O Karakasa na Cultura Pop: De Piada a Horror
Apesar de suas origens jocosas, a imagem do Karakasa é poderosa e por isso ele continua a aparecer na cultura popular. Sua aparência distinta o tornou um favorito em animes, mangás e videogames. Em jogos como Nioh e na franquia Touhou Project, ele é um inimigo recorrente. Ele também faz participações em séries como Gegege no Kitaro e Karas, provando que um guarda-chuva com uma perna só é uma figura memorável em qualquer contexto.
A Conexão Sombria com o Filme de Mononoke: O Fantasma na Chuva
Após falar sobre o filme Mononoke: O Fantasma na Chuva nesse post, fui pesquisar mais sobre o Karakasa, que é como o Boticário identifica o Mononoke dessa aventura sombria. Após isso, escrevi um pouco sobre o Yokai Karakasa, que serviu de base para esse mononke e resolvi traçar algumas hipóteses para a escolha do Karakasa como a “Forma” do espírito nesse filme e já adianto: onde ele é retratado como uma manifestação direta da tragédia que assombra Oku ao invés de um mero eco do folclore.
- O Abandono da Individualidade: No coração do harém, todas as mulheres são submetidas a um ritual brutal: devem jogar fora seus pertences mais preciosos. Este ato não é uma mera tradição; é uma declaração de morte simbólica. Elas abrem mão de sua individualidade, de suas memórias e de seus sonhos para se tornarem peças intercambiáveis em um tabuleiro de intriga política. O Karakasa, um tsukumogami nascido de objetos abandonados e esquecidos, é o reflexo perfeito desse ritual. O espírito não é apenas a personificação do rancor e da inveja, mas a encarnação do que foi descartado, das almas perdidas e das identidades esmagadas que jazem no fundo do poço de Oku.
- O Símbolo Pervertido: Um guarda-chuva serve para proteger, para dar abrigo da tempestade. Contudo, o Karakasa do filme, embora nascido da dor e da rejeição, parece ter uma motivação perversa: ele age para proteger a protagonista das agressões verbais e psicológicas que ela sofre. A sua intenção, a princípio, pode ser a de um guardião. O problema é que o seu método é monstruoso. A sua “proteção” é macabra, resultando na morte horrível daqueles que ameaçam uma das protagonistas.
- A Aparência Cômica x O Horror Gótico: O Karakasa original é uma figura brincalhona, frequentemente retratado como um ser travesso. No filme, ele é o oposto: uma entidade aterrorizante e sombria, que hora se manifesta como um fantasma e hora como um ser de horror cósmico indescritível, até assumir a forma de um guarda-chuva que me lembrou muito de um ser marinho saído das profundezas do abismo. Essa transformação espelha o horror psicológico da série, onde a simplicidade de uma forma se choca com a complexidade e a profundidade de uma tragédia. O filme nos lembra que, por mais inofensivo que um objeto pareça, se ele for abandonado junto com os sentimentos de uma pessoa, o rancor pode transformar até mesmo um guarda-chuva de papel em algo assustador.
Depois de desvendarmos as camadas de significado do Karakasa, fica claro que a genialidade de Mononoke reside justamente em sua capacidade de pegar lendas antigas e infundir-lhes uma nova e terrível vida. O que outrora foi um espírito travesso de um guarda-chuva abandonado se transforma, nas mãos do diretor Kenji Nakamura, em um reflexo perturbador da dor humana e da opressão social. O filme nos ensina que os verdadeiros monstros não são apenas criaturas folclóricas, mas as manifestações de nossas próprias tragédias. É um lembrete sombrio de que, no fundo, a linha que separa o folclore do horror psicológico é tão fina quanto o papel de um antigo guarda-chuva. E assim, a caçada por novos contos sombrios continua...
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