Calçado para um mundo distópico

Uma pessoa misteriosa usando uma máscara de gás e calçando coturnos militares em um cenário distópico

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Porque eu só uso calçados militares?

Já me perguntaram isso aqui onde trabalho. Eu lembrei dessa pergunta recentemente, pois as minhas botas já estavam com a sola tão desgatada que elas furaram e eu precisei substituí-las.

Resolvi então tirar uma foto dos meus pares novos e velhos (os que eu precisei descartar após uns bons anos de uso) para discorrer um pouco sobre esse assunto despropositado aqui no Blog. Com a foto eu percebi que eu tinha mais pares de bota do que eu imaginava (usei todas por anos; sem contar as que já descartei anos atrás).

Uma coleção de botas militares

Mas garanto que não uso calçados militares por nenhuma questão maluca... Falo isso porque tem uma galera maluca por aí que gosta de fazer cosplay de soldado. Não é o meu caso. De onde venho, parecer soldado ou policial é algo extremamente desvantajoso e até perigoso. Vai que estouro uma guerra e me obrigam a entrar em um caminhão verde escuro, me jogam uma metralhadora na mão e me obrigam a ir servir o meu país?

Eu não tenho nada contra quem quer ser patriota (talvez eu não esteja sendo absolutamente sincero nesta parte), mas eu penso exatamente como Edmon Dantes em O Conde de Monte Cristo: meu país não fez nada por mim, pelo contrário, quando fez foi contra mim, de modo que eu não devo nada à essa pátria e, enquanto eu negar à pátria a minha estima, é a pátria e a nação que continuam a me dever. Não foram essas as exatas palavras usadas por Alexandre Dumas, mas eu tentei passar a ideia (no momento certo posto essa citação e talvez eu faça algum comentário a seu respeito). Mas a ideia é essa: não uso calçados militares por causa dos militares, da nação ou qualquer coisa relacionada a esse tema.

Também não é por causa do tema sobrevivencialista: eu acredito que todos deveriam aprender alguma coisa sobre como se virar no meio do mato, primeiros socorros, etc, etc, etc. Mas não vejo nenhum sentido em pessoas pensarem em como sobreviver em situações extremas, quando essas mesmas pessoas não sabem nem de onde vem a água da torneira, a carne do açougue e o leite da caixa de leite... Enfim. O sobrevivencialismo virou uma forma de vender equipamentos e cursos para pessoas que secretamente (ok, talvez não secretamente assim) desejam viver em um mundo distópico romantizado incansavelmente por livros, jogos e séries de televisão. Eu não tenha absolutamente nada contra isso, mas gosto de dar nomes aos bois. Quem ganha com essa propaganda moderno de "os fins dos tempos estão chegando" são as marcas que desenvolvem produtos para esse nicho.

Com isso eu quero dizer que algumas pessoas se preocupam com o apocalipse, ou melhor, com o pós-apocalipse e por isso vivem equipadas para o momento em que o mundo vai passar por uma crise e nos veremos em um The Walking Dead ou The Last of Us ou algo do gênero. E aí essas pessoas andam por aí fantasiadas de soldados do fim do mundo, com calçados e roupas apropriadas para um campo de batalha; como calças táticas, blusas com mil bolsos de tecido que não rasga e outros coisas mais...

Eu não estou fazendo uma crítica a essas pessoas (eu sou do time que acha esses equipamentos legal para caramba e se eu tivesse espaço e dinheiro sobrando eu colecionaria canivetes, lanternas, entre outras bugingangas). Felizmente meu dinheiro não está sobrando, o que me livra de ter que quebrar a cabeça para arranjar espaço para essas coisas.

Mas, em defesa desses produtos, eu prefiro gastar um pouco mais caro uma vez com uma garraga térmica feita para suportar trilhas (e quem sabe um cenário distópico) e que vai durar anos (talvez décadas) na minha mão, do que trocar de garrafa todo ano. O mesmo vale para calçados e outras coisas mais que ache que precisem durar muito, mas muito tempo. Na época em que eu andava muito de bicicleta (faz dez anos que eu não uso mais a bicicleta como meio de transporte: infelizente) eu comprei um mochila própria para atividade em trilhas, ciclismo e caminhada e que está comigo até hoje (ok, ela já precisa de uma costura em um ziper de um bolsinho interno, mas de resto ela está inteira: e eu a uso todo dia para vir para o trabalho).

Por esses motivos, eu acho essas pessoas que são afixionadas pelo tema sobrevivenialista tão malucas (talvez só um pouquinho); pelo contrário, eu acredito que elas possuem razões mais que suficientes e abundantes para acreditarem que o fim está próximo. Fora isso, é útil saber se virar nas mais variadas situações (por mais que na prática as coisas sejam bem menos românticas e bem menos legais do que vemos em livros, jogos e na tv).

Mas talvez eu não seja tão abitolado nesse tema, porque eu sou do time que acredita que o apocalipse já aconteceu e nós vivemos em um mundo pós-apocalíptico já tem um bom tempo. Temos zumbis andando por todo lado com o nariz enfiado na tela do celular.

Esses dias eu vi um grupo de pessoas sentadas em um banco aqui onde trabalho; elas trabalham juntas na mesma sala e estavam curtindo um momento de descanço após o almoço, porém não diziam uma única palavra entre elas, ficavam apenas deslizando o polegar sobre a tela do seu próprio celular, hipnotizadas com a espectativa do que a tela lhes apresentaria após o último deslizar de dedos. Até com as pessoas com quem eu trabalho isso acontece às vezes; quando terminamos o almoço e ainda estamos esperando algum retardatário finalizar o seu prato (geralmente este retardatário sou eu) os demais presentes à mesa ficam ocupados com o celular ao invés de conversarem entre si. Mas, em se tratando de pessoas que trabalham o dia inteiro na mesma sala, eu posso até entender essa falta de vontade de estabelecer uma conversa no seu horário de descanso.

Apesar do meu ataque a este comportamento zumbi, devo defender as pessoas com quem eu trabalho; nossas conversas no horário de almoço são frequentes, apesar do apelo irresistivelmente hipnotizador dos nossos celulares.

Além dos zumbis de smartphone, há outros sinais (abundantes) de que este é um mundo distópico: ainda bem, porque convenhamos; um mundo onde os zumbis ficam o tempo todo no celular não parece suficientemente assustador para fazer justiça a uma realidade distópica.

Outras coisas estranhas e perturbadoras evidenciam um mundo que deu errado: no caso o nosso mundo. Como por exemplo, pessoas trabalhando para entidades virtuais (representadas por sequências numéricas que chamamos de "C.N.P.J."). Essas mesmas pessoas e outras (que ainda não tem idade suficiente para trabalhar para um CNPJ) tem suas vidas guiadas por algoritmos de computador, que dizem o quais propagandas elas devem ver e quais produtos devem consumir. Algoritmos que escutam a conversa dessas pessoas para poder ofertar produtos relacionados às suas conversas (será que isso é paranoia minha? Ou alguém aí se identifica com essa percepção de que nossos celulares nos escutam o tempo todo).

Uma pessoa misteriosa usando uma máscara de gás e calçando coturnos militares em um cenário distópico

Além disso, muitas das pessoas nesse mundo louco em que vivemos acreditam que o leite nasce em caixas cultivadas em alguma horta de laticinios nos hiper-mercados; talvez no mesmo lugar em que os mercados plantam e colhem sardinhas enlatadas... Estas mesmas pessoas acreditam que a água potável vem da torneira e que sua quantidade é infinita.

Parando para pensar bem, esse é um mundo bem maluco, em que barcos de metal com asas e pesando toneladas cruzam os céus carregando pessoas e mercadorias de um lado para o outro; até para a lua as pessoas já foram pegando carona nesses barcos metálicos suspeitos e perigosos (não há quem me convença que um troço de metal pesando toneladas é seguro quando este troço está voando sobre as nossas cabeças).

Juntemos a tudo isso a poluição do ar, aquecimento global, derretimento do Permafrost, ilhas de plástico nos oceanos, extinção em massa de espécies animais e vegetais, fome em diversos países (quando a tecnologia atual permite zerar essa fome), guerras (quando a história recente mostra o quão desastroso pode ser uma guerra para os seus envolvidos), etc...

Se este não é um mundo distópico dos mais terríveis, eu sequer quero imaginar o que seria.

Mas não é por isso que deixei de usar tênis e sapatos sociais há mais de dez anos... Quem diria aonde esse fato levaria essa conversa.

O motivo é um pouco mais sem graça do que estar preparado para viver em um mundo distópico (futuro ou presente, real ou imaginário, exagerado ou realista).

Acontece que tênis e sapatos sociais não duram muito no meu pé. Não mesmo. Talvez por eu ter usado tantas botinas de pedreiro em minha juventude (eu fui o ajudante de pedreiro do meu pai por anos) fez com que meus pés ficassem mal acostumados e despreparados para a sensibilidade/fragilidade excessiva de calçados mais confortáveis e visualmente mais sociáveis. Acontece que se você anda a maior parte da infância com uma botina pesada no pé e se acostuma a chutar pedras e pisar em cacos de tijolo sem sentir nada, fica sem entender porque um tênis não durou mais que seis meses no seu pé (nessa época em que tentei me acostumar a tênis e sapatos sociais eu andava muito; é verdade, mas já não trabalhava em obras com o meu pai).

Nessa época em que os sapatos sociais pareciam uma obrigação para alguém se adaptando ao mercado de trabalho em um escritório eu também não entendi o porque de sapatos sociais fazerem as unhas do dedão do meu pé ficarem encravadas (eu pensava comigo: se eu sobrevivi anos calçando botinas de pedreiro, porque meus pés sofriam mais com sapatos sociais?).

Além disso, na época em que tentei usar esses calçados mais comuns, eu tinha dificuldade em achar modelos adequados para pés largos (sério, eu tenho um pé bem largo e os meus dedos sofriam muito ao ficarem comprimidos em tênis e sapatos sociais: precisei ir ao médico duas vezes para removerem a unha encravada do meu dedão com um bisturi).

Como eu não queria ir trabalhar em um escritório com uma botina de pedreiro (por mais que na época eu vivesse carregando computadores e nobreaks para todos os lados), resolvi então procurar algum calçado que durasse mais tempo no meu pé e tivesse um formato mais largo (ou seja, que não expremesse os meus dedos). Foi assim que eu começei a usar calçados militares (e não parei mais).

Para dizer a verdade eu abri uma excessão nos últimos dois ou três anos, durante a pandemia eu comprei um par de Chelsea Boots mais social (para o caso de precisar usar uma roupa mais social: eu não queria aparecer em uma reunião vestindo roupa social e calçando um coturno militar padrão selva ou coisa do tipo).

Mas esse par de Chelsea Boots (apesar de confortável e suficiente largo), não se mostrou resistente como os demais calçados que uso (a sola já se desgastou completamente e em um dos pés ela trincou ao meio; o estrago não foi o suficiente para descolar ou coisa do tipo, mas mais que o bastante para entrar água em dia de chuva). Ainda assim, por mais que eu revesasse esse Chelsea Boot com um coturno militar, ele durou bastante (uns dois anos) comigo.

Uma velha bota militar
Mas existe ainda um outro motivo para eu usar esse tipo de calçado: no final das contas eu gosto mais desse estilo mais rústico, mais rock, mais agressivo e mais versátil (afinal, hoje em dia temos coturnos militares tão confortáveis quanto uma bota casual e que servem para qualquer terreno e situação). A versatilidade é um fator importante para o meu uso, pois apesar de eu trabalhar em um escritório na área de tecnologia, eu costumo usar o mesmo calçado para um grande numero de situações: fazer uma trilha, trabalhar em uma obra (às vezes eu pego em uma enchega ou marreta) ou ir no mercado a pé... Para todas essas situações eu uso o mesmo tipo de calçado (isto é, uma bota ou coturno). A botina da foto ao lado, por exemplo, já viu de tudo: escritório, trilha no mato, obra, pátio de paralelepipedo e as terríveis ruas de Osasco.

Aliás, eu ando muito a pé em Osasco, minha cidade natal e que carinhosamente eu chamo de Oz (porque ela é tão ruim quanto a cidade Oz em o Mágio de Oz... Mas essa é outra história...).

Osasco tem alguns bairros bons, razoavelmente civilizados, com calçadas largas o bastante para os seus pedestres... Mas esses "alguns bairros" são poucos mesmo. A maioria dos bairros de Osasco possuem ruas esburacadas, calçadas quase inexistentes, desniveladas, cheias de entulho e outros obstáculos dos mais diversos tipos (como carros estacionados, buracos, boeiros, degraus com quase 50 cm de altura, etc, etc, etc).

O bairro em que moro então, nem se fala. O Santa Maria é um bairro periférico que faz divisa com outros municípos (como Carapicuíba). Ali as calçadas são um desafio para qualquer pedestre (acredito que são um desafio até para um pelotão militar efetuar uma simples marcha) e uma prova de durabilidade e resistência para qualquer calçado.

Uma rua perto de casa tinha, até bem pouco tempo, um poste no meio do asfalto, ao invés de estar na calçada. E essa não é uma ruazinha qualquer: apesar de ter a largura de uma ruazinha qualquer, ela é uma das estradas principais, caminho dos onibus municípais que cruzam o bairro constantemente; subindo e descendo por sua encosta irregular e caótica.

Outra rua perto de casa (uma das poucas com calçadas mais largas) virou estacionamento de carros nos pontos em que o cimento não cedeu e virou um buraco lamacento. Alguns centimetros ao lado desse buraco lamacento há alguns boeiros cujas tampas de cimento possuem trincas largas e suspeitas e que passam a impressão de que terromotos assolam a região a bastante tempo (na verdade são resultado dos caminhões que passam por cima dessas tampas de boeiro de forma descarada e despreocupada).

A grande questão é que Osasco é um organismo estranho que cresceu de forma caótica, irregular, adaptando-se a sucessivas ondas de urbanização catastrófica com o intuito de hospedar e sustentar cada vez mais uma presença humana predatória e mal planejada.

Claro que não tenho nada contra Osasco; os outros municipios brasileiros, em sua grande maioria, também sofreu ou sofre desse mesmo caos hipertrófico. O que é algo bastante condizente com uma sociedade pós-apocalíptica, desorganizada e despreparada para planejar seu futuro.

Será que também é por isso que eu tenho o hábito de me vestir de preto na maior parte do tempo e calçar botas militares? Olhando a minha volta, eu deduzo que não: parece que nossa realidade distópica é bem eclética com gostos e custumes dos sobreviventes desse apocalipse pelo qual passamos sem notar.


Vou ficando por aqui após esse devaneio sem propósito e desprovido de utilidade prática.