A Lâmina que Quebrou as Correntes do Gênero e Sangrou a Hipocrisia de um Império
Saudações, caros espíritos que, vez ou outra, dão uma passada por esta montanha erma do meu Estranho Mundo. Estou aqui hoje, pois sinto a necessidade de despejar palavras sobre algo que, para o bem ou para o mal, despontou no reino digital do Streaming: o novo filme Rosa de Versalhes na Netflix. Para muitos, um retorno nostálgico; para mim, uma oportunidade de espiar novamente para dentro de um barril de pólvora disfarçado de uma festa de máscaras em uma Ópera francesa.
Mas não nos enganemos. Rosa de Versalhes, seja no mangá (que a genial Riyoko Ikeda deu à luz entre 1972 e 1973), no icônico anime que o seguiu, ou nesta nova encarnação cinematográfica, é muito mais do que laceiras, perucas e dramas de alcova real. É um soco no estômago, um estudo da opulência contra a miséria, do indivíduo contra o peso esmagador do sistema, e, crucialmente, uma demolição da mais persistente e ridícula das prisões: aquela que a sociedade constrói em torno do que significa ser "homem" ou "mulher".
É aqui que este conto do século XVIII se entrelaça perigosamente com aquelas minhas antigas reflexões, expostas naquele post esquecido sobre a diferença entre homens e mulheres. Lembra? Aquela conversa sobre como somos máquinas de carne programáveis, e que as distinções de gênero que aceitamos como "naturais" não passam de imposições culturais, tecidas para manter as engrenagens do poder girando de certa forma?
Pois bem, Lady Oscar François de Jarjayes é a prova viva, em uniforme militar e espada em punho, do que eu tentei dizer naquele post.
Oscar: A Anomalia que Desafiava a Programação
Nascida mulher, mas criada como homem pelo pai para herdar seu posto na Guarda Real, Oscar não é apenas uma personagem; é uma aberração necessária para a narrativa, uma anomalia que expõe a fragilidade das regras sociais. Ela foi "programada" para ser um homem, para se portar como tal, lutar como tal, pensar como tal. E funcionou. Ela se tornou um dos melhores, um espinho na lateral de qualquer um que ousasse subestimá-la com base em sua biologia real.
No entanto, a força da história é que a capacidade de Oscar não deriva de ela agir como homem, mas de ela possuir atributos como coragem, habilidade, inteligência e um senso de justiça – qualidades humanas, não limitadas por cromossomos ou convenções de vestuário. Ela é a encarnação da minha argumentação: não há nada na biologia de uma mulher que a impeça de empunhar uma espada melhor do que a maioria dos homens, liderar soldados com bravura ou navegar nos labirintos da política com astúcia. A ideia de que certas tarefas ou características são inerentemente "masculinas" ou "femininas" é uma mentira imposto pela cultura social predominante, e Oscar a vive e a desintegra a cada duelo, a cada ordem, a cada olhar sombrio sobre o mundo que a cerca.
Sua existência no cerne da Guarda Real, o corpo de elite encarregado de proteger a realeza, era um tapa na cara de toda a estrutura social e das ridículas "diferenças" de gênero que ditavam quem podia fazer o quê. Ela era a lâmina que, sem querer, começou a cortar as amarras daquela "programação" cultural.
O Império da Hipocrisia e a Escravidão Disfarçada
Mas a luta de Oscar não era apenas pessoal. O cenário de Rosa de Versalhes é o Reino da França pré-revolucionária, um império de fausto e miséria. Enquanto a nobreza e a realeza (personificadas, mas não limitadas, pela figura trágica de Maria Antonieta) nadavam em luxo e indiferença, o povo chafurdava na pobreza, na fome e na falta de dignidade humana básica.
Este sistema político retratado na obra é um estudo sombrio de opressão. A burguesia emergente, muitas vezes comprando títulos e favores, e a antiga nobreza formavam uma elite que explorava a vasta maioria da população. Saúde? Lazer? Educação? Eram privilégios para poucos, negados aos muitos que sustentavam a estrutura com seu trabalho e impostos escorchantes.
E aqui, meus caros, a história se torna perigosamente contemporânea. Não se enganem com as palavras bonitas que hoje são jogadas em nossas caras. O "livre mercado" muitas vezes se traduz em liberdade para explorar. A "direita" defende estruturas que concentram poder e riqueza. A "liberdade de expressão" é frequentemente usada para regurgitar ódio e desinformação que mantêm o status quo. O "progresso" beneficia quem? A "república" e a "democracia", em muitos cantos sombrios do mundo, são meros disfarces para oligarquias e elites que perpetuam uma forma de escravidão disfarçada. As necessidades básicas que faltavam ao povo francês de 1789 – acesso à saúde, educação, moradia digna – ainda são negadas a milhões sob o verniz de um sistema que prega a "meritocracia" enquanto perpetua a desigualdade.
Rosa de Versalhes é importante porque, ao mostrar a brutalidade daquele sistema, nos força a olhar para os nossos. Ele retrata a faísca da revolta que nasce não apenas da fome física, mas da fome por justiça e reconhecimento humano.
"O Coração é Livre": A Faísca da Revolta
No meio de toda essa podridão e opulência cega, surge um tema recorrente na obra: "O coração é livre". Essa não é apenas uma frase bonita; é a antítese da "programação" cultural e social. É o chamado interno, a voz que sussurra que, apesar das cadeias impostas por nascimento, dever ou expectativa, a alma humana tem a capacidade de escolher seu próprio caminho, de sentir por si mesma, de amar quem quiser e, crucialmente, de decidir por quem lutar.
Essa mensagem reverbera em várias camadas:
- A escolha de Oscar: Apesar de toda a sua criação, seu dever para com a realeza e a pressão de seu pai, o coração de Oscar se recusa a ser aprisionado pela "programação". Ela vê a miséria do povo, questiona a justiça do sistema e, gradualmente, seu coração a leva a fazer uma escolha radical. Ela se liberta das amarras de seu nascimento e posição para ficar ao lado dos oprimidos.
- A influência sobre os soldados: A decisão de Oscar não é isolada. Sua bravura, sua integridade e, acima de tudo, a liberdade que ela demonstra em seguir seu próprio coração (mesmo quando isso significa trair tudo o que lhe foi ensinado), inspira os soldados sob seu comando. Eles, também "programados" para servir a Coroa inquestionavelmente, veem nela uma alternativa, uma possibilidade de lealdade a algo maior que um rei e uma corte decadente: a lealdade à humanidade, ao seu próprio povo. Essa influência é crucial para os eventos que se seguem, levando regimentos inteiros a desertar e se juntar à Revolução.
- Relacionamentos e Amor: O tema da liberdade do coração também se manifesta nas complexas relações da obra, desafiando normas sociais e expectativas de gênero. O amor (em suas várias formas) surge como uma força que ignora convenções, ditada apenas pelo próprio coração.
O caminho que Oscar escolhe trilhar é doloroso, perigoso, mas profundamente significativo. É o caminho da autodescoberta e da liberdade genuína. Ela não apenas quebra as correntes do gênero, mas também as da classe social e do dever cego. Sua decisão de abandonar a Guarda Real e se juntar ao povo nas ruas é um dos momentos mais poderosos e inspiradores da história – a máquina de carne "reprogramando" a si mesma em tempo real, escolhendo a humanidade acima da etiqueta e do privilégio.
Curiosidades de um Conto Imortal
Algumas notas de rodapé para enriquecer o cálice desta história:
- O mangá original, Versailles no Bara (A Rosa de Versalhes), de Riyoko Ikeda, é considerado um clássico do gênero shoujo (mangá para garotas), mas transcendeu as barreiras de gênero e demografia no Japão e no mundo devido à sua profundidade histórica e dramática.
- O anime de 1979, dirigido inicialmente por Tadao Nagahama e depois por Osamu Dezaki (conhecido por seu estilo visual dramático e intenso), é reverenciado por muitos fãs e solidificou a imagem de Oscar e a história no imaginário popular. Dezaki injectou uma atmosfera melancólica e épica que complementou perfeitamente a trama.
- A história de Oscar, uma mulher vivendo como homem, foi revolucionária para a época em que o mangá foi publicado, desafiando abertamente as noções tradicionais de feminilidade e papéis sociais.
- Embora a trama central gire em torno de figuras históricas como Maria Antonieta e Fersen, Lady Oscar é uma personagem ficcional, criada por Ikeda para ser o ponto focal através do qual o leitor vivencia os eventos que levam à Revolução. Uma adição genial que permite explorar os temas de gênero, identidade e justiça de forma mais incisiva.
O Legado Sangrento de uma Rosa
O novo filme na Netflix teve a pesada tarefa de honrar este legado. Ele precisou mais do que reproduzir visuais bonitos; precisou capturar a alma da história: a opulência decadente, a injustiça corrosiva, a luta interna de Oscar e a poderosa mensagem de que o coração, nosso coração, tem a capacidade de ser livre, de rejeitar a programação, de escolher um lado mesmo quando esse lado está coberto de farrapos e sangue.
Na minha opinião o filme conseguiu transmitir a ferocidade da luta de Oscar contra as expectativas de gênero (ecoando minha própria cruzada contra as bobagens culturais), e mostrou o quão podre era o sistema que oprimia o povo naquela França pré-revolução (e nos faz pensar nos sistemas que nos oprimem hoje, disfarçados sob nomes pomposos). O filme também faz o espectador sentir a urgência e a beleza trágica da escolha de Oscar em seguir seu coração livre... então talvez valha a pena a tinta digital gasta neste post.
Minhas filhas assistiram com os olhos grudados na tela e, mesmo que tenham reclamado um bocado do tom trágico da obra, não me deixaram tirar do filme quando ameacei fazer isso apenas para testá-las quanto à veracidade das reclamações.
Assistam. Mas assistam com olhos abertos. Vejam não apenas o drama histórico, mas o espelho que ele reflete sobre nossas próprias vidas e as "programações" que ainda tentam nos confinar. Vejam em Oscar não apenas uma heroína de anime, mas um símbolo da resistência contra a ideia de que nossa biologia dita nosso destino ou nossa capacidade.
Afinal, como eu escrevi, e como Oscar provou com sua vida: a diferença entre homens e mulheres, no que realmente importa – força de caráter, inteligência, capacidade de amar, lutar e escolher a liberdade – é nenhuma. Somos todos Homo sapiens sapiens, capazes de coisas incalculáveis, capazes de quebrar nossas próprias correntes.
Que a lâmina de suas próprias escolhas seja afiada. ⚔️
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