Se o tempo para reunir as informações e chegar a uma conclusão for ficando cada vez mais curto (e se todos se transformarem em comentaristas de notícia ou críticos), o mundo vai se tornar ainda mais ríspido e tenso. Ou vai ficar muito perigoso.
— "Romancista como vocação" de Haruki Murakami
O espírito dos tempos modernos
uma longa divagação sobre um mundo que se tornou ríspido e tenso
Ao ler esse trecho de "Romancista como vocação" eu tive a impressão de que Haruki Murakami conseguiu resumir nessa frase o espírito de nossos tempos.
Neste ano de 2022 podemos constatar que a população de internautas nos passa a impressão de que todos se transformaram em comentaristas e críticos detentores da verdade e podemos levantar alguns exemplos desse fato (vou citar alguns adiante). A verdade é a de que todos tornaram-se críticos encarregados de reagir às novidades quase que de forma instantânea ao surgimento destas novidades: sejam elas relacionadas à cultura pop, política, esportes, fofoca, etc. Penso que muito desse espírito dos tempos modernos é fruto do avanço tecnológico relacionado à internet e à propagação da informação através de várias mídias (texto, imagem, som, multimídia).
A tecnologia atual permite que tomemos conhecimento sobre um fato ocorrido do outro lado do mundo quase que de forma instantânea. Isso torna todos os que têm acesso à internet em seres hiper-informados. Sei que o acesso à internet não é um privilégio de todos. Na verdade, segundo eu pesquisei no Oráculo de Delfos da nossa era (o Google), quase 3 bilhões de pessoas não possuem acesso à internet. Ainda assim número representa apenas 37% do total de pessoas vivas no planeta atualmente. Em resumo, o numero de pessoas conectadas é assustador.
Mas se de um lado a internet dá o poder da super informação para esse exército de homo sapiens conectados à rede, do outro lado a tecnologia tira deles uma item valioso: o tempo.
Todos os mercados criados pelos Humanos evoluem junto com a tecnologia de modo que se tornam cada vez mais eficientes e rápidos. Isso vale até mesmo para o mercado que lucra com a informação (como notícias, entretenimento e especulação imobiliária). Por exemplo, quando uma série de TV é anunciada por meio de um trailer no Youtube, toda a população de internautas corre para se informar sobre esse trailer o mais rápido possível, para então tirarem uma conclusão com a maior pressa possível para em seguida publicarem essa conclusão para os seus pares na internet (em blogs, redes sociais, etc). Mas por qual motivo isso tem que ser feito tão rapidamente?
Simples, caso demorem para consumir a informação e excretarem sua opinião na rede, quando o fizeram aquela informação já não será uma novidade e por isso ela valerá menos.
Neste mundo informatizado, as informações são mais valiosas quando são uma novidade. Talvez isto ocorra porque em um mundo onde é tão fácil saber de tudo e de maneira tão rápida, não demora para que as pessoas se sintam entediadas e, desse modo, as novidades se tornam um tipo de informação mais escasso e por isso mais valioso.
Abro um parenteses nessa minha longa divagação para explicar que algo importante: Eu não estou tentando dizer dizer que vivemos em um mundo onde a tecnologia torna as pessoas em uma multidão de sábios apenas porque os Homo Sapiens em questão tem um super acesso à informação. Longe disso. As informações não são consumidas pela maioria das pessoas de forma profunda; em geral as pessoas não assistem uma série de TV para meditarem sobre o sentido da vida ou para aprenderem uma forma mais consciente de existência; em geral elas querem apenas se divertir enquanto passam o tempo. Isso não é um problema e nem mesmo estou fazendo qualquer tipo de julgamento quanto ao que as pessoas fazem com toda a informação que está disponível na internet: apenas estou constatando o fato de que a internet raramente é usada pelas pessoas para que estas adquiram mais sabedoria ou para que aprendem algo construtivo.
Alias, nem toda a informação parece ser do interesse das pessoas. Pelo contrário; o tipo de informação que mais atraís as pessoas é aquela que ganha o formato de entretenimento e isso inclui, inclusive, notícias. As notícias são a forma mais simples de propagar informação na internet. Um filme pode ser resumido pelas pessoas em uma notícia de poucos parágrafos, em um vídeo com caráter informativo ou crítico ou até mesmo polêmico (isto é, uma informação que gera conflitos entre as pessoas que possuem opiniões divergentes sobre o filme), etc.
Podemos ilustrar a dinâmica do mundo moderno, no que diz respeito às pessoas que compõe essa grande nação de internautas, com a seguinte alegoria.
Digamos que a dinâmica entre as pessoas, a tecnologia e as informações formam um ecossistema que abrange vários lugares diferentes: a internet, o mundo real, a casa das pessoas, etc. Chamemos esse ecossistema de CyberSelva.
Na CyberSelva existe uma fonte primária de alimento. Essa fonte primário é como um tipo de vegetal que serve de fonte de energia para toda uma cadeia alimentar. Essa planta; essa espécie de grama cibernética, é a Informação. Como a grama no mundo real, a Informação é o ser "vivo" que serve de base para toda a existência da CyberSelva. Sem ela a CyberSelva não existiria.
Dito isso, imaginemos agora que na CyberSelva existem animais que comem "Informação". Eles são consumidores de conteúdo. E esses consumidores sempre querem mais e mais informação, pois sem ela eles morreriam de tédio.
Agora, além dos animais consumidores de conteúdo existem aqueles que além de consumiram conteúdo, também são produtores de conteúdo: sim, isso mesmo, eles também geram informação nova a partir da informação que eles consumiram. Esses animais produtores de conteúdo fazem isso para conseguir algo que eu vou chamar de Status; e eles conseguem Status não apenas produzindo conteúdo novo, mas também quando animais consumidores provam esse conteúdo e gostam. Ou seja, quanto mais animais consumidores provarem o conteúdo, mais o produtor daquele conteúdo ganha Status. Se os animais consumidores gostarem do conteúdo, os produtores ganham mais Status ainda. Se esses animais Produtores de Conteúdo não conseguirem Status, eles morrem como produtores de conteúdo e passam a ser apenas consumidores de conteúdo.
No mundo real, esses produtores de conteúdo podem obter com seus Status outros benefícios; como dinheiro, reconhecimento, fama, etc.
Os animais que produzem conteúdo são capazes de produzir informação nos mais diferentes tipos de formato: podem produzir um filme, um livro, uma descoberta científica, uma crítica sobre algo, uma comédia, uma notícia, uma música, etc.
É através da dinâmica entre esses três elementos que a CyberSelva funciona: Informação, Consumidores de Conteúdo e Produtores de Conteúdo (que também são consumidores).
Em resumo temos:
Dinâmica da CyberSelva
Informação; espécie de "grama da CyberSelva" que pode ser convertida em outros conteúdos que servem de sustento para outros animais não morrerem de Tédio ou por Falta de Status;
Consumidores de Conteúdo; espécie de animal que consome informação pura e também informação elaborada (Conteúdo) para não morrer de tédio;
Produtores de Conteúdo; espécie de animal que além de consumir informação e conteúdo elaborado também produz conteúdo novo a partir daquilo que consumiu. Esses animais produzem conteúdo para conseguir Status. Quando não conseguem nenhum Status, são nulos como produtores e funcionam na prática apenas como consumidores de conteúdo. Quando obtém sucesso na aquisição de Status, tornam-se fonte de "alimento" para muitos animais consumidores, que passam a segui-los em busca de mais e mais informações novas.
Mas a CyberSelva é um mundo em constante evolução, e essa evolução permite que os Consumidores e Produtores de conteúdo tenham acesso a mais informações cada vez mais rápido.
Se os Consumidores de Conteúdo vivem em função de não ficarem entediados consumindo novas informações para isso, pode parecer uma coisa boa você conseguir obter mais informação e cada vez mais rápido. Do mesmo modo, essa velocidade pode parecer boa para os Produtores de Conteúdo conseguirem mais Status cada vez mais rápido.
Mas há uma armadilha escondida na CyberSelva. E essa armadilha é uma questão matemática já nossa conhecida. É a lei da oferta e demanda, segundo a qual um item raro torna-se mais valioso.
Vamos imaginar agora no seguinte:
Um determinado indivíduo, que é um animal Consumidor de Conteúdo, tem acesso a um catálogo de informação, por exemplo, na Netflix, e esse indivíduo gosta apenas de filmes e séries de comédia, mas não tem interesse em outros itens do catálogo como documentários, animações, fantasia e terror. Digamos que de todo o catálogo da Netflix, apenas 15% do conteúdo seja do interesse desse indivíduo hipotético.
Após imaginarmos isso, vamos imaginar que esse indivíduo hipotético acabou de assinar a Netflix e todo esse conteúdo do seu interesse (esses 15% do catálogo) sejam novidade para ele.
Imaginando esse cenário, sabemos que hoje, em 2022, em pouco tempo o indivíduo hipotético desse nosso exemplo ira consumir esses 15% do catalogo e, após isso, ele voltará a ficar entediado. Para suprir esse tédio ele irá buscar outras fontes de informação relacionadas ao conteúdo que ela consumiu: como textos, vídeos, entrevistas entre outras possibilidades. Mas quando toda aquela informação presente no conteúdo de relevância para esse indivíduo tiver sido dissecada nessa Selva Cybernética, o tédio voltará a assombrar esse animal, que ficará faminto e ávido por novidades relacionadas aos seus interesses.
Um indivíduo conseguir consumir uma grande dose de informação em pouco tempo a ponto de esgotar as novidades naquele determinado nicho é uma característica tipica dos tempos modernos. Na década de 90, por exemplo, um apanhado de séries e filmes equivalente ao que a Netflix possui hoje seria suficiente para um individuo ter novidades dentro daquele nicho por todo o ano ou até mais, afinal naquela época não era tão fácil e rápido acessar todo esse conteúdo (estou citando filmes e séries apenas como exemplo por serem conteúdos mais amplamente consumidos, mas poderia ser qualquer tipo de conteúdo, desde livros, descobertas científicas, documentários, etc).
E o que acontece quando um animal consumidor de conteúdo ávido e faminto se depara com uma novidade na CyberSelva?
Ele corre para consumir de forma repetida aquela informação que já estava disponível na CyberSelva ou vai atrás da informação que é novidade?
Da mesma forma, os animais Produtores de Conteúdo preferem a informação que é novidade, pois como ela é mais visada e como eles querem ganhar mais Status, eles dão preferência para as novidades e correm ávidos e famintos para consumir esse tipo de conteúdo a fim de produzir seu próprios conteúdos que terão preferência pela população de animais Consumidores de Conteúdo.
Esse é o motivo pelo qual a informação considerada novidade na CyberSelva é mais valiosa. E é por isso que tanto os Consumidores de Conteúdo e Produtores de Conteúdo são tão ávidos por consumir esse conteúdo e por consequência tirarem suas conclusões a respeito do que for.
Você pode pensar que apenas os animais Produtores de Conteúdo é que se apressam em consumir informação para produzir seu próprio conteúdo o mais rápido possível. Mas saindo da CyberSelva e indo para o mundo real, vemos que muitas vezes uma pessoa age das duas formas (Consumidor e Produtor de conteúdo) e isso ocorre principalmente graças às redes sociais. Uma pessoa não precisa ser um profissional na área de produção de conteúdo (como um jornalista ou apresentador) para dar sua opinião sobre algo, para fazer uma crítica, resenha ou simplesmente polemizar um assunto. Opiniões também são um tipo de conteúdo, gerado a partir do consumo de outros conteúdos. As redes sociais são a principal ferramenta tecnológica responsável por transformar todos os internautas em potências produtores de conteúdo e todos estão buscando ganhar mais Status com isso; alguns não se importam se vão se tornar celebridades ou não, mas ainda assim querem mais Status enquanto que outras pessoas vêem nessa obtém de Status nas redes sociais como uma espécie de passaporte para se tornar um grande Produtor de Conteúdo e obter cada vez mais Status com isso (lembrando que o Status é convertido em outras coisas no mundo real, como dinheiro e influência).
Diante desta CyberSelva em que todos vivemos online, constatamos hoje que Haruki Murakami acertou ao dizer que um mundo assim faria de todos comentaristas e críticos vivendo em um mundo cada vez mais ríspido e tenso.
Exemplos não faltam.
Recentemente e Netflix lançou uma série Live Action que adapta um anime da década de 90 de mesmo nome. A série foi cancelada após uma temporada por não ter atingido a audiência almejada pela plataforma de Streaming. A questão aqui não é o cancelamento da série, mas a rejeição que a série teve por parte do público e, ironicamente a parte do público que mais rejeitou o Live Action é formada por internautas que assistiram à animação original na década de 90. Muitas opiniões ríspidas (para dizer o minimo) que essa parcela de interessados nesse assunto alegou que o Live Action não é fiel ao anime original, não gostaram do elenco escalado para viver os personagens, entre outras coias do tipo. Ainda mais irônico que isso é saber que apesar dos fãs acharem que o Live Action não "respeita" o conteúdo original, os próprios criadores do original estão envolvidos no Live Action e para eles o Live Action era uma oportunidade de levar o projeto para algo mais próximo da ideia original (a qual não foi possível ser executada na década de 90).
Um exemplo muito parecido com o de Cowboy Be Bop é a série Lord of the Rings da Amazon, que ainda nem foi lançada e já teve uma enorme rejeição pelos "fãs" do universo Tolkien: e por universo Tolkien devemos entender os Livros (material original) e os filmes da trilogia O Senhor dos Anéis e de O Hobbit. Segundo os "fãs" de Tolkien, o material promocional que está apresentando para anunciar detalhes da série Lord of the Rings não é fiel ao que foi escrito pelo famoso escritor sul-africano. Eu fico muito curioso para saber o que o próprio Tolkien pensaria a respeito desse assunto se ele ainda estivesse vivo nos dias atuais.
Para sairmos um pouco da cultura pop e falarmos de um assunto um pouco mais sério, a polarização politica vivida no mundo todo nos últimos anos também é uma amostra do que é viver em um mundo mais ríspido e tenso.
Claro que as pessoas, todas elas, tem direito à sua própria opinião. Mas é lamentável quando as pessoas acham que estão formulando uma opinião verdadeiramente sua e de forma tão rápida. Será que elas realmente pensaram em tudo sobre todos os ângulos possíveis? Será que ouviram e tentaram entender o ponto de vista daqueles que pensam de forma diferente? A sua opinião e consequentemente as suas ideias podem causar problemas para alguém se forem colocadas em prática? Não seria melhor ir mais de vagar em pensar com calma sobre as coisas?
Estas são apenas algumas das perguntas que podemos nos fazer antes de concluir algo, antes de formular uma crítica ou compartilhar uma opinião.
A verdade é que os Homo Sapiens não estão usando a tecnologia para se tornarem mais rápidos e bem informados. É a tecnologia e a informação que está usando os Homo Sapiens para se propagarem cada vez mais rápido. É uma ideia meio maluca à primeira vista e pode até soar um pouco como ficção cientifica; mas eu pensaria duas ou mais vezes antes de refutar essa possibilidade.